sábado, 15 de março de 2014

Prefácio de minha obra que será lançada - se tudo der certo em abril - 

Prefácio –Tese de Doutorado – José Renato Ferraz da Silveira – PUC/SP


William Shakespeare e a teoria dos dois corpos do rei: a tragédia de Ricardo II

Entre os séculos XIV e XVII a Inglaterra imaginou e/ou experimentou instituições sociopolíticas que seriam decisivas em diversos quadrantes geográficos em períodos ulteriores, inclusive o contemporâneo. Os tempos ali sentidos, tanto no que concerne à Idade Média quanto à Moderna, nas suas conexões histórico-simbólicas, auxiliaram na definição – talvez como em nenhum outro lugar – dos traços predominantes do Ocidente liberal, e que viria também a se tornar democrático posteriormente. Nunca é demais, portanto, quando para lá retornamos e buscamos conhecer mais e melhor o seu caráter.
O professor José Renato Ferraz da Silveira, do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), dando sequência a uma pesquisa que já rendeu bons frutos quando da publicação de sua dissertação de mestrado na forma de livro[1], dá a conhecer, agora, a sua tese doutoral, defendida junto à PUC/SP, também na forma de livro: William Shakespeare e a teoria dos dois corpos do rei: a tragédia de Ricardo II. Sim, os termos sugerem proximidade temática, mas a complexidade que cada empreendimento oferece é ímpar. Veja-se a passagem a seguir, na qual o prefaciador daquele livro e orientador acadêmico de Silveira, professor Miguel Chaia (p. 13), discorre sobre o autor e sua obra:

Este livro [A Tragédia da Política em Ricardo III] é uma ousadia intelectual e um instigante produto acadêmico. José Renato faz parte de um grupo de intelectuais que percebeu na contemporaneidade a complexa relação entre as áreas de saber e busca borrar as fronteiras que compartimentam a inteligibilidade do mundo. Nesse sentido, o autor supõe que também a arte – como a filosofia e a ciência – é um exercício de pensamento e criação capaz de gerar diferentes formas de conhecimento. Especialmente, no caso deste livro, o autor seleciona peças de William Shakespeare para realizar uma investigação das relações de poder, problematizando questões clássicas que envolvem a sociabilidade humana.

Exatamente o mesmo pode ser consignado em relação ao documento que ora vem a público. No entanto as diferenças (entre as obras) não se limitam ao rei estudado: em Ricardo II (1367-1400), cujo reinado compreende o intervalo temporal de 1377 a 1400, explora-se a teoria dos dois corpos do rei (The King’s Two Bodies), formulada pelo historiador medieval alemão Ernst Hartwig Kantorowicz[2] (1895-1963). Uma abreviadíssima síntese de sua erudita pesquisa: postula este autor que, entre as teorias que conferiam sustentação legal e divina aos poderes reais no medievo, aquela que identificava uma dupla dimensão no corpo real merece ser sobrelevada. Em específico: o rei não teria apenas “um corpo”, mas sim dois; um natural, à semelhança de qualquer ser humano; e outro místico, dotado, por conseguinte, de características especiais. O primeiro estaria sujeito à morte; o segundo jamais morreria. Neste caso, a majestade da excelsa posição seria transferida para outro corpo, remanescendo a simbologia. Observe-se, ademais, que essa teoria conhecerá especial aceitação na Inglaterra absolutista do século XVI, a do chamado “período elisabetano”.
Não parece ser sem sentido a opção de Silveira em inaugurar o seu trabalho com um capítulo esclarecedor sobre o reinado de Elisabeth (1558-1603). Veja-se que é no final do governo da “rainha virgem” que Shakespeare produzirá o seu Ricardo II (1595-1596). O tempo, aqui, demonstra-se elástico: ao narrar (e criticar) a conduta de um rei apeado do poder, o bardo parece manifestar preocupações políticas contemporâneas a si. A propósito, no segundo capítulo Silveira volta a examinar o contexto histórico em que Shakespeare produz. O longuíssimo período de poder daquela que foi considerada a fundadora do moderno império inglês foi prenhe de tensões (e de conspirações). Ao auscultar historicamente um período anterior, Shakespeare ilumina o seu – sem prejuízo às luzes lançadas sobre os tempos vindouros.
A Inglaterra – ou melhor, o que viria a ser a Inglaterra – no último quartel do século XIV denotava salientes evidências medievais. Dois grupos sociais eram francamente majoritários em uma formação societária marcadamente rural: proprietários de terras e camponeses. A Casa Real, desfrutante de todo o arcabouço simbólico creditado às elites nobiliárquicas, já respondia a pressões advindas de um Parlamento iniciado nas reivindicações por poder – lembrem-se as diferenças entre o rei João Sem-Terra, os barões e o Papa, em 1215, quando da escritura da Magna Charta Libertatum. Este é o ponto: Ricardo II torna-se rei legitimamente (era herdeiro do trono), mas, no decorrer de sua governança, em face de erros políticos continuados, é subtraído de sua condição real. A deposição de Ricardo II, bem como todo o quadro de crises que caracterizaram o seu reinado, constituem o mote para que Shakespeare reflita sobre a política, a condição humana do político e o poder – em uma perspectiva trágica, bem compreendido – de modo potencialmente universal.
Shakespeare prescreve a ordem porque diagnostica a desordem. Uma vez mais, Silveira desfila acuro analítico ao posicionar o artista britânico em um espaço de confluências entre “clássicos”, como Platão e Aristóteles, e “modernos”, tais como, Maquiavel, Hobbes, Locke e Weber. Todos eles, cada um a seu modo – e sem o descuro da inflexão teórica promovida pelo “gênio florentino”, cujo edifício erigido com O Príncipe permitiu a autonomia da política –, ao homenagearem o realismo (em seus diversos matizes), contribuíram à compreensão da política e da miséria humana que lhe é ínsita. Desdobramento lógico: a ordem social traveste-se em uma quimera – e o exercício da política um exasperante movimento que ousa conciliar arte e técnica. O poder não somente se alimenta da alma dos que o controlam; ele requer habilidades humanas que são, certamente, encontráveis em poucos – e que estão dispostos a fazer o que é preciso fazer.
Com o subsídio teórico de Max Weber, Silveira mobiliza uma díade conceitual estruturante na política: o princípio da legalidade e a lógica da legitimidade. O primeiro é condição necessária (e adequada), mas não suficiente à unção no (e mantença do) poder; a severa atenção à segunda mitiga o dilema da instabilidade da anuência, caracterizadora de qualquer relação entre governante e governados. Ricardo II, com a sua contumaz inabilidade na condução dos negócios do Estado, maculou a aura circundante aos reis. E, com isso, o último dos Plantagenetas, antes de ser destituído do trono por seu primo, Henrique Bolingbroke, bem como pela parte da nobreza que a este apoiava, deslegitimou-se à condição real. Assiste-se, dessa forma, não somente à deposição de um rei, mas desconstituem-se os fundamentos de uma das teorias que suportaram a institucionalidade europeia no medievo: a teoria dos dois corpos do rei começava a ruir; os valores modernos iniciavam a corroer os seus equivalentes medievais.
Vislumbram-se, assim, os planos que interagem na obra de Silveira: um autor contemporâneo (século XXI) se debruça sobre uma peça shakespeariana (final do século XVI), que, de sua parte, com o possível intento de metaforizar o reinado de Elisabeth, retrata um drama histórico-político da segunda metade do século XIV. Não é necessário recorrermos às exigências vergastadas por Quentin Skinner[3] a uma boa recuperação de um tempo pretérito – a saber, erudição à farta na apreensão dos significados dos termos dos debatedores daquele contexto – para reconhecermos a coragem incomum do professor José Renato no tratamento dado aos seus temas estudados. O que se depreende de sua obra (em tempo: de agradabilíssima leitura) – e que certamente o aproxima de perspectivas shakespearianas – é uma possibilidade que a todos fascina: os indivíduos teimam em não ser escravos de seu contexto de formação, ceteris paribus, parece ser necessário reconhecermos componentes constantes nas nossas condutas. O exame da política – assim como o de seu sujeito, o político –, em sua dimensão agônica e universal, apresenta-se como um bom caminho.


Reginaldo Teixeira Perez
Santa Maria/RS, outubro de 2013.



[1] SILVEIRA, José Renato Ferraz da. A Tragédia da Política em Ricardo III. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.
[2] KANTOROWICZ, Ernest H. Os Dois Corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[3] SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. In: James Tully (Ed.). Meaning and Context: Quentin Skinner and his Critics. Cambridge: Polity Press, 1988. p. 29-67.

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