sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A Laranja mecânica

Amir Labaki

Nova York, abril de 1989. Um bando de arruaceiros adolescentes espanca e estupra uma jovem executiva americana em pleno Central Park. Resultado: agonizante, ela é hospitalizada. Explicação de um dos atacantes: eles estavam apenas se divertindo. Nova York, dezembro de 1971. Ao comentar o mais novo furor cinematográfico, o crítico da Time, Jay Cocks, alerta: o cruel protagonista do filme, será num futuro próximo, o típico adolescente, um idólatra desvairado assassino Charles Manson. Falava de A Laranja mecânica (A Clockwork Orange).
O diretor norte-americano Stanley Kubric encontrara no romance futurista homônimo de Anthony Burgess o substrato para revisitar o grande tema de sua filmografia, que não chegava ao nono título. Toda a obra madura de Kubric discute Das Unbehagen in Del Kultur, o mal estar na civilização.
Kubric procura examinar sob o ponto de vista freudiano histórias com potencial mitológico que tratem de personagens desajustados, dada a inescapável repressão instintual exigida pela vida em sociedade. (Vide Lolita, O Iluminado, Nascido para Matar). Mesmo quando este tema não é dominante, como em Doutor Fantástico ou 2001, Uma Odisséia no espaço, é ele que sustenta a discussão kubrickiana, seja da paranóica corrida nuclear ou do furor da humanidade diante do avassalador progresso tecnológico, respectivamente.
Assim como o recente Nascido para Matar, A Laranja Mecânica é uma típica versão cinematográfica do Bildungs-roman, o tradicional romance de formação, que acompanha o processo de educação moral e intelectual de um jovem, lapidando-o para o convívio social. Kubric aproveitou esta conhecida estrutura narrativa para aplicá-la a seu modo. Assim, em Nascido para Matar, assiste-se à mais cruel educação para o assassínio dos jovens marines americanos que vão lutar no Vietnã. Já em Laranja Mecânica, o processo de domesticação tem um objetivo diverso. O protagonista Alex (Malcom MacDowell) é um jovem que teria atingido a alvorada a vida adulta ainda com sua arquitetura psíquica infantil intocada, em estado bruto, o que implicaria a plena liberdade para expressão de seus instintos. Isso seria uma virtual impossibilidade psicológica, pois as – por assim dizer – forças civilizatórias já se apresentam atuantes desde a mais tenra idade, mas ficção é ficção e assim prossigamos. A primeira parte do filme nos mostra, numa Inglaterra futura, Alex e sua gangue de boçais, espancando um velhote bêbado, drogando-se, violentando uma mulher depois de aleijar seu marido escritor, assassinando outra. Com isso, Alex satisfaz amoralmente seus instintos sexuais e de destruição. Sua prisão após o último crime será uma espécie de segundo parto.
Depois de tranqüilos dois anos de cárcere, Alex se candidata a um novo método de condicionamento psicológico que regeneraria definitivamente os criminosos, devolvendo-os pacificados, ao convívio social. Para Alex, seria este uma espécie de supletivo no princípio da realidade. Mas o experimento behaviorista erra na dose, substituindo a absoluta liberdade instintual pela completa repressão. Violência e sexo passam a provocar vômitos em Alex, que se descobre paralisado, desumanizado como uma laranja mecânica. Aproveitando-se desse novo estado, suas vítimas se vingam das cruezas pretéritas e Alex é resgatado de uma tentativa de suicídio por aqueles que o usaram como cobaia.
A mais rotineira interpretação de sua “cura” final assinada entre outros pela ácida Pauline Kael em The New Yorker, vê Alex voltar a ser o mesmo deliquente do início, com a diferença de contar agora com a proteção de poderosos padrinhos (o governo inglês, representado pela figura do Ministro da Justiça). Discordo. O Alex final é um adulto civilizado, com seus instintos de destruição e sexuais finalmente represados. Sua violência foi, para usar as palavras de Freud, “suplantada pela transferência do poder a uma unidade maior, que se mantém unida por laços emocionais entre seus membros” (Por Que a Guerra? Carta a Einstein). Alex aderiu ao essencial pacto civilizatório e a prova disso é que seus devaneios pós-recuperação remetem a uma prática sexual sadia e socialmente aprovada (ele se imagina fazendo amor com uma mulher sob os aplausos de uma multidão).
Pauline Kael também criticou Kubric por ter “assumido a perspectiva deformada e hipócrita de um jovenzinho depravado”. Eis outra observação apressada e superficial. Kael confundiu o narrador do filme (e do livro) com um pretenso alter-ego ou porta voz exclusivo do autor. Kubric “fala”, naturalmente, através do filme como um todo, do conjunto dos personagens, e se tivéssemos que apontar algum porta voz, seguindo suas próprias palavras, teríamos que destacar o capelão do presídio. É ele quem alerta expressamente para os riscos de se tentar eliminar a possibilidade do homem exercitar seu livre-arbítrio, questão apontada por Kubric como central em suas preocupações.
Mas a sempre perturbadora Kael foi voz dissonante quando do lançamento de A Laranja mecânica. Kubric jamais conheceu êxito crítico igual. Houve, contudo, também quem considerasse seu filme uma diluição comercialesca do livro de Burgess. Por certo Kubric não foi tão original quanto Burgess ao tratar de sua própria arte. Esta criou no vocábulo sincrético para a gangue de Alex que faria inveja a James Joyce. O próprio Kubric reconheceu que sua versão cinematográfica resultou formalmente mais conservadora. Mas equiparar seu filme a qualquer caça níqueis hollywoodiano com maquiagem futurista é uma estultice. Basta reparar a imperturbável organicidade dos elementos ultraestilizados de A Laranja mecânica (décor asséptico, tipos cartunescos, cenas coreografas, etc). para que se perceba o raríssimo domínio completo que Kubric tem sobre seu ofício.
Mesmo não sendo este seu melhor filme, sobretudo por problemas de ritmo devidos à excessiva duração, encontram-se aqui inúmeros momentos que se fixam perenemente à memória – como estupro ao som de Cantando na Chuva e a bacanal ao som da abertura do Guilherme Tell de Rossini. São peças com lugar obrigatório dentro do museu imaginário de todo cinéfilo. De quantas cenas rodadas desde então podemos dizer o mesmo?