quinta-feira, 30 de junho de 2011

Sobrevida de segunda

Anne Applebaum

Na mais notável das muitas fotos feitas na celebração de gala em que comemorou o seu 80° aniversário, Mikhail Gorbachev parece mais baixo e mais gordo do que no auge da carreira, quando era uma das pessoas mais importantes do mundo. Sua expressão é inescrutável, não passando de um meio sorriso; sua aparência também parece pecar pela falta de asseio, e talvez ele estivesse um pouco inseguro de si. É claro que tais impressões podem ter sido exageradas pelo fato de, na foto em questão, o antigo secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética estar de braços dados com Sharon Stone. A atriz usa um sedoso vestido cor de champagne e batom de um vermelho vivo. Sorri abertamente. De salto alto, ela parece ser mais de 15 cm mais alta que Gorbachev, o que sem dúvida diminui sua aura de autoridade.
Mas, pensando bem, faz muito tempo que Gorbachev deixou de ter a mesma aura de autoridade. Na verdade, todos os aspectos daquela extravagante festa de aniversário gritavam “celebridades de segundo escalão”. Sharon não emplaca um filme de sucesso há algum tempo; o mesmo pode ser dito de Kevin Spacey, coanfitrião do evento ao dela. Entre os presentes estavam também Goldie Hawn, Arnold Scwarzenegger, Ted Turner, Shirley Bassey e – sinto informar – Lech Walesa. O baile de gala era ostensivamente um evento para arrecadar fundos para a Fundação Raissa Gorbachev, que ajuda a financiar o tratamento de crianças com câncer. Mas a noite serviu principalmente para sublinhar quanto é estranho o destino de Gorbachev. Ali estava o homem que lançou a glasnot e a perestroika, presidiu o desmantelamento do império soviético e depois o da própria União Soviética, é um dos estadistas fundadores da Rússia moderna – e, ainda assim, sua festa de aniversário foi realizada no Royal Albert Hall, em Londres, entre convidados que mal o conheciam.
Isso não foi um acidente; 20 anos após a dissolução da URSS, a Rússia se mostra ambivalente (na melhor das hipóteses) em relação a Gorbachev. Longe de ser celebrado como herói, ele é comumente lembrado como um líder desastroso – isso quando chega a ser lembrado. É verdade que criou espaço para uma nova era de abertura anunciando liberdade antes impensáveis na década de 80, mas na Rússia ele também é considerado o responsável pelo colapso econômico dos anos 90. Da mesma maneira, a maioria dos russos não anseia por agradecer a ele pelo fim do império soviético. Ao contrário: o atual primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, descreveu o desmantelamento da União Soviética como “a maior catástrofe geopolítica” do século 20. Uma pesquisa de opinião divulgada em março, na época do aniversário, mostrava que cerca de 20% dos russos sentiam uma hostilidade ativa em relação a Gorbachev, 47% eram indiferentes a ele e apenas 5% diziam admirá-lo. E esse resultado foi uma melhoria: outra pesquisa, realizada em 2005, revelou que ele inspirava hostilidade em 45% dos russos. Na Rússia atual, a palavra perestroika recebe quase invariavelmente conotações negativas.
Em Londres e Washington, a reputação de Gorbachev é obviamente mais positiva. Ele é tratado com carinho – foi convidado para o funeral de Ronald Reagan e para a festa de 80 anos de George Bush pai – e costuma ser celebrado como um “símbolo” da paz e do bem-vindo fim da Guerra Fria. Mas ele também recebe elogios insossos e às vezes até inapropriados. Em sua festa de aniversário, Paul Anka cantou em dueto com um roqueiro da era soviética. O refrão: “One Day we´ll recall/ He was changing the world for us all” (“Um dia lembraremos/ que ele estava mudando o mundo para todos nós”). Então Sharon o presenteou com uma pergunta retórica: “Onde estaria a Rússia se não estivesse colhendo os frutos benefícios da democracia livre?” Eu gostaria de ter estado presente para ver a expressão de constrangimento dos convidados no Royal Albert Hall. Afinal, a Rússia não colheu os frutos benéficos da livre democracia, como bem sabiam todos os russos ali presentes. Até o próprio Gorbachev descreveu recentemente a democracia russa como uma mentira: “Temos instituições, mas elas não funcionam. Temos leis, mas elas precisam de policiamento para serem cumpridas”.
É claro que não se pode culpar Gorbachev pela falta de transparência política no Kremlin de hoje, nem pela debilidade dos partidos políticos, pelo retorno da KGB enquanto fonte de influência e poder e nem pela violência que as autoridades russas empregam intermitentemente contra todo tipo de dissidente. E nem foram de responsabilidade dele as verdadeiras causas do colapso econômico dos anos 90 – o baixo preço do petróleo, 70 anos de políticas econômicas equivocadas e a insaciável ganância da elite russa educada nos sistema soviético. Boris Yeltsin, o primeiro presidente russo, carrega uma parcela maior da culpa pela corrupção na economia russa, e Putin é sem dúvida o principal responsável pelo estado e estagnação da política russa.
Na verdade, Gorbachev não pretendia que as coisas acabassem da maneira como acabaram. Mas até aí ele nunca se propôs a ser um dos pais fundadores da Rússia moderna. Era um reformista, não um revolucionário; quando se tornou líder do Partido Comunista Soviético, em março de 1985, sua intenção era revitalizar a União Soviética, não desfazê-la. Ele sabia que o sistema estatal estava estagnado. Mas não entendeu por quê. Em vez e abolir o planejamento estatal ou anunciar uma reforma nos preços, Gorbachev anunciou uma drástica campanha de combate ao álcool: talvez, se bebessem menos, os trabalhadores produzissem mais. Dois meses depois de assumir o poder, ele impôs restrições à venda de álcool, aumentou a idade mínima para o consumo de bebidas alcoólicas e ordenou cortes na produção das mesmas. O resultado: grandes perdas para o orçamento soviético e uma dramática escassez de certos produtos, como o açúcar, que a população começou a usar para produzir vodca caseira ilegal.
Foi somente depois do fracasso da campanha – e somente depois do desastre nuclear de Chernobyl tê-lo obrigado a se dar conta dos perigos do sigilo numa sociedade industrial avançada – que Gorbachev empreendeu sua segunda tentativa de reforma. Como a campanha contra o álcool, a glasnot tinha o intuito original de promover a eficiência econômica. Gorbachev acreditava que um debate aberto dos problemas da União Soviética levaria ao fortalecimento do comunismo. Ele sem dúvida nunca quis que sua política alterasse o sistema econômico da URSS de modo profundo. Ao contrário. Pouco depois de assumir o poder, ele disse a um grupo de economistas do partido: “Muitos de vocês enxergam como solução para nossos problemas um apelo aos mecanismos de mercado como substitutos do planejamento direto. Alguns de vocês vêem o mercado como um bote salva-vidas para suas economias. Mas, camaradas, vocês não devem pensar nos botes salva-vidas, e sim no navio, e este navio é o socialismo.
É claro que Gorbachev acabaria mudando suas ideias, tanto na economia quanto em muitas outras áreas. De fato, esse padrão se repetiria muitas vezes. Determinado a salvar o planejamento central, ele disse às pessoas que falassem abertamente a respeito desse sistema econômico – e, como resultado, a população concluiu que ele não funcionava. Determinado a salvar o comunismo, ele deixou que as pessoas criticassem esse sistema político – e, como resultado, elas decidiram que preferiam o capitalismo. Determinado a salvar o império soviético, ele concedeu liberdade aos europeus orientais – que usaram essa liberdade para se libertar das garras do império tão logo puderam fazê-lo. Ele nunca compreendeu a profundidade do cinismo em seu próprio país e nem a profundidade do anticomunismo nos Estados satélites soviéticos. Nunca compreendeu quanto as burocracias centrais estavam podres e nem quanto os burocratas tinham se tornado amorais. Ele sempre pareceu surpreendido pelas conseqüências de seus atos. No fim, em vez de fazer história, Gorbachev se viu correndo para alcançá-la.
Na verdade, todas as suas decisões mais radicais e importantes foram aquelas que ele não tomou. Ele não ordenou aos alemães orientais que atirassem contra as pessoas que cruzavam o muro de Berlim. Não lançou uma guerra para evitar a deserção dos países bálticos. Não impediu o esfacelamento da União Soviética e nem impediu a ascensão de Yeltsin ao poder. O fim do comunismo poderia sem dúvida ter sido muito mais sangrento e, se houvesse outra pessoa no comando, é possível que as coisas tivessem sido assim. Por sua recusa em recorrer à violência, Gorbachev merece a cafona serenata de Paul Anka.
Mas, por não ter compreendido que estava ocorrendo, Gorbachev deixou de preparar seus compatriotas para as grandes mudanças políticas e econômicas. Ele não ajudou a projetar instituições democráticas e não preparou os alicerces para uma reforma política ordenada. Em vez disso, tentou-se manter no poder até o último instante – para preservar a União Soviética até que fosse tarde demais. Como resultado, não houve para ele sobrevivência política após o colapso da URSS. Depois de deixar o cargo, Gorbachev tentou por três vezes fundar novos partidos políticos. Fracassou em todas elas.
Na política o senso de oportunidade é tudo, como estamos aprendendo novamente este ano com a agitação no Oriente Médio. Se o egípcio Hosni Mubarak tivesse convocado eleições livres um ano atrás, seria lembrado como um estadista magnânimo. Se o líbio Muamar Kadafi tivesse graciosamente abdicado em favor de seu filho Saif al-Islam, ele seria lembrado agora nos brindes feitos em todos os salões europeus. Se o tunisiano Zine al-Abidine Ben Ali tivesse começado a planejar sua aposentadoria um pouco mais cedo, estaria agora vivendo em paz num subúrbio de Túnis e não evitando os mandados de captura da Interpol em algum lugar da Arábia Saudita.
Pela mesma lógica, se Gorbachev tivesse planejado o desmantelamento da União Soviética desde 1988, em vez de aceitar furioso esse destino somente após sua consumação, em 1991, seu aniversário este ano poderia ter sido celebrado por russos agradecidos, em lugar de atrizes americanas balbuciando banalidades. Como também aprenderemos no Oriente Médio, uma transição organizada da ditadura para a democracia conta com dois elementos cruciais: uma elite disposta a abrir mão do poder e uma elite alternativa suficientemente organizada para assumi-lo. Graças em parte à natureza relutante e caótica dos últimos anos de Gorbachev no poder, a Rússia não teve nenhuma das duas coisas.
Pode ser que não houvesse para ele a possibilidade de agir de outra forma. Gorbachev nada sabia da democracia real e conhecia menos ainda a dinâmica do livre mercado. Criado e educado na cultura soviética, ele simplesmente não conseguiu pensar numa saída para aquele sistema. Não evitou a mudança e não atirou nas pessoas que finalmente realizaram essa mudança. Mas, num momento histórico de tamanha importância, a ignorância não serve como desculpa.

Anne Applebaum, colunista do Washignton Post. Escreveu este artigo para foreign Policy.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

É capoeira, sim sinhô!
Misto de dança e luta, a capoeira surgiu com os escravos africanos vindos de Angola. É praticada em roda, ao som de instrumentos como o berimbau, pandeiro e caxixi, além das palmas e do canto dos participantes.

As origens
Em Angola, existia um ritual chamado "jogo da zebra", no qual se lutava com cabeçadas e pontapés. No Brasil, toda manifestação considerada "violenta" por parte dos negros foi reprimida e proibida. Por isso, para disfarçar, os escravos transformaram sua luta em dança, introduzindo instrumentos musicais e movimentos cadenciados. Logo descobriram outra vantagem: além de divertimento, a capoeira podia ser usada como defesa pessoal em caso de necessidade.
Perseguição
No início do século XIX, os capoeiristas do Rio de Janeiro eram perseguidos pelo major Vidigal, temido chefe de polícia. O Código Penal de 1890 previa castigos corporais e desterro para quem praticasse capoeira. Alguns capoeiristas baianos foram recrutados à força, como "voluntários da pátria", para lutar na Guerra do Paraguai. Já na Bahia a situação era mais amena. A capoeira era praticada em locais abertos, nos subúrbios de Salvador e em algumas cidades como Santo Amaro, Cachoeira e Nazaré das Farinhas.


Sobrevivência
A capoeira deixou de ser considerada passatempo de vagabundos e marginais e passou a ser mais valorizada apenas na década de 1930, quando um grupo comandado por Mestre Bimba apresentou-se no Palácio do Governo. O convite foi feito pelo próprio governador da Bahia, Juracy Magalhães, e contou com a presença do presidente Getúlio Vargas.

Grandes nomes
A história da capoeira tem mestres que são reverenciados até hoje. Mas o mais importante deles viveu na cidade de Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Besouro Cordão de Ouro – também conhecido como Mangangá (gênero de besouro venenoso) – era considerado invencível. Outros ases da capoeira foram o pescador Samuel Querido de Deus, o estivador More, e Mestre Pastinha (discípulo de Mangangá), todos baianos. Também merecem destaque João Pequeno, Tio Benedito, Tio Alípio, Canário Pardo, Bento Certeiro, Pedro Porreta e Mestre Bimba. No Rio de Janeiro, o destaque fica por conta de Mestre Joel.
A capoeira de saia
Mas quem acha que os grandes capoeiristas da história foram todos homem engana-se. Algumas mulheres também ficaram famosas na capoeira baiana, entre elas Palmeirona, Júlia Fogareira, Maria Pernambucana, Maria Cachoeira, Maria Pé no Mato, Maria Homem e Odília.
Congada e cateretê
Essas duas danças são praticadas no Brasil desde a época da Colônia, graças ao incentivo dos jesuítas. A congada era usada na catequização dos negros. O cateretê, na dos índios.

Congada
O bem e o mal se enfrentam mais uma vez. Desta vez, representados por cristãos e mouros. Grupo enfrenta grupo, numa batalha que tem sempre um único vencedor: os cristãos. Os perdedores são batizados e convertidos. E todos se unem num louvor conjunto a São Benedito, padroeiro dos negros. Essa é a história dramatizada pela congada, bailado popular praticado do Ceará ao Rio Grande do Sul. Tradição iniciada no período da Colônia, relembra a coroação do rei dos congos e era usada pelos jesuítas para apaziguar o instinto guerreiro dos escravos negros. Até hoje, a congada é o ponto alto das festas do Divino Espírito Santo.

Cateretê
Ao contrário de outras danças folclóricas, o cateretê nasceu no Brasil. Ainda na época da Colônia, era utilizada pelos jesuítas na catequese dos índios, nas comemorações em homenagem a Santa Cruz, São Gonçalo, São João e Nossa Senhora da Conceição. No interior de São Paulo e no Rio de Janeiro ainda é possível observar festas em que se dança o cateretê – também chamado catira e xiba. Em alguns locais a dança é praticada com tamancos de madeira. O dançarino procura "pisar nas cordas", ou seja, acompanhar o som da viola com os pés. Também é comum a presença de um "tirador de palmas", pessoa que puxa as palmas enquanto as outras dançam.

Eta forrozão arretado!
O Nordeste vibra ao som de uma dança alegre, onde os pares circulam, dando um show de descontração e agilidade. Qualquer que seja a festa não pode faltar o forró.

Três estilos
O forró surgiu no início do século XX nas casas de dança nordestinas. Virou mania nacional, espalhando-se por várias cidades brasileiras. Existem três estilos, marcados pelo som de zabumbas, triângulos e sanfonas. O xote, de origem européia, é o mais lento. O casal dança dando dois passos para um lado e dois para o outro. O baião, criado no final da década de 1940, é o mais rápido e exige maior deslocamento. Já no xaxado, os movimentos são marcados por um dos pés batendo no chão.
For all?
Existem duas versões para a origem da palavra "forró". Alguns pesquisadores afirmam que é uma abreviação de forrobodó (confusão, bagunça). Para outros, a palavra originou-se do inglês for all. Os defensores dessa idéia contam que, durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos instalaram uma base militar na cidade de Natal, com cerca de 15 mil soldados americanos, que tiveram forte influência na vida local. Os lugares em que eram organizados os bailes eram conhecidos como for all (para todos). A população dizia "forrol", que teria virado "forró".

É hora de frevê!!!
Improvisação. Essa é a palavra-chave quando o assunto é frevo, dança típica de Pernambuco. Os passos são feitos com a ajuda de sombrinhas e guarda-chuvas. Os movimentos são amplos e alegres e os passos têm nomes curiosos.
Carnaval, suor e frevo
Nas cidades de Recife e Olinda, carnaval é sinônimo de frevo. O povo toma conta das ruas e a palavra de ordem é uma só: animação. Bonecos gigantes, de três metros de altura, saem dançando no meio do povo, dando um toque único à festa. Os bonecos mais tradicionais são o Homem da Meia-Noite, a Mulher do Meio-Dia, o Filho do Homem da Meia-Noite e o Menino e a Menina da Tarde. Os blocos, com nomes curiosos, reúnem homens e mulheres de todas as idades. O "Bacalhau do Batata", que só desfila na Quarta-Feira de Cinzas, é um dos mais tradicionais.
Ciganos e soldados
Quem criou o frevo? Essa pergunta ainda não tem uma resposta definitiva. Uma das prováveis origens foi encontrada pelo compositor e maestro Guerra Peixe (1914-1993). Pesquisando o folclore nordestino na década de 1940, ele descobriu que os passos do frevo foram trazidos por ciganos de origem eslava e espanhola. Porém, a versão mais difundida é a de que o ritmo teria surgido de uma divertida disputa entre as bandas militares de Recife. As bandas rivais costumavam competir com coreografias usando balizas (bengalas). Com o tempo, misturou-se a outros ritmos como maxixe, modinha, polca, quadrilha e pastoril, ganhando características próprias.
A festa dos reis escravos
O maracatu nasceu nos cortejos religiosos da tradição afro-brasileira, nos quais os negros acompanhavam os "reis" eleitos pelos escravos para a coroação nas igrejas. A cerimônia era seguida de batuque em homenagem à padroeira, Nossa Senhora do Rosário.

Cortejos de reis negros
Para provar que, apesar da escravidão, ainda mantinham seu poder e prestígio, os reis africanos participavam dos cortejos religiosos – única ocasião social à qual os negros tinham acesso – seguidos por seus séqüitos. Esses cortejos eram chamados maracatus e, com o tempo, tornaram-se uma representação muito comum em festas populares.

A festa dos reis escravos
O maracatu nasceu nos cortejos religiosos da tradição afro-brasileira, nos quais os negros acompanhavam os "reis" eleitos pelos escravos para a coroação nas igrejas. A cerimônia era seguida de batuque em homenagem à padroeira, Nossa Senhora do Rosário.

Cortejos de reis negros
Para provar que, apesar da escravidão, ainda mantinham seu poder e prestígio, os reis africanos participavam dos cortejos religiosos – única ocasião social à qual os negros tinham acesso – seguidos por seus séqüitos. Esses cortejos eram chamados maracatus e, com o tempo, tornaram-se uma representação muito comum em festas populares.
As várias nações africanas
Antigamente, os cortejos de maracatu podiam ser vistos em festas religiosas, cívicas e populares. Hoje só acontecem durante o carnaval, principalmente em Pernambuco. Os blocos saem pelas ruas cantando e dançando, divididos em alas que representam as nações africanas. O cortejo é acompanhado por músicos e, na frente, vão duas negras que carregam bonecos que representam o príncipe Dom Henrique e a princesa Dona Clara. Os outros personagens são príncipes, damas, embaixadores, vassalos, escravos, dama-do-paço e indígenas.
Desfile sem enredo
Apesar das personagens, o maracatu não tem enredo. É um desfile ao ritmo da música, marcado pelo som forte dos tambores. Faz parte da tradição a presença de um chapéu-de-sol (guarda-sol) vermelho, elemento que representa o sol protetor. Na Paraíba há grupos semelhantes, as cabindas. Os integrantes do maracatu formam grupos chamados nações.



Reisados e cheganças
A véspera do Dia de Reis é comemorada com cantorias e danças nas ruas e praças. Essas tradições relembram costumes do tempo da Colônia.

As cheganças
As cheganças são danças dramatizadas que acontecem durante o ciclo de Natal, no carnaval e nas festas de São João. O termo "chegança" vem, provavelmente, de uma dança portuguesa do século XVIII, embora alguns especialistas afirmem que seja originário de palavras náuticas como "chegar" – dobrar as velas à chegada do navio – e "chegada" – abordagem. Na chegança de mouros, o tema central é a luta dos cristãos contra os mouros. Já as histórias de navegadores são contadas na chegança de marujos ou marujadas. Um cordão de marinheiros puxa um navio e anuncia a chegada dos marujos. Os integrantes interpretam personagens como Patrão, Piloto-Mor-de-Guerra, Padre-Capelão, Embaixador, Guarda-Marinha. Eles simulam manobras de navio até chegarem ao seu destino: palanques ou casas. Normalmente participam apenas homens. As mulheres participam da chegança das mulheres. Cantam e dançam usando chapéus com fitas e flores. Não há um enredo em particular nem personagens.

Os reisados
Surgido no Brasil no século XIX, o reisado é constituído por pequenas peças encadeadas, ao final das quais é apresentado o folguedo do bumba-meu-boi. Mais parecido com um teatro lírico do que com uma dança popular, geralmente tem só um figurante, que dá nome ao folguedo, acompanhado por um coro. Existem vários títulos de reisados correspondentes aos personagens principais. Entre eles: Cavalo-Marinho, Pica-Pau, Caipora, Zé-do-Vale e Borboleta. O reisado é encenado pelas ruas. Quando o grupo pára nas casas que desejam recebê-lo, os personagens são apresentados, o figurante canta, dança e, ao final, atira um lenço para os espectadores. Este lenço é devolvido com uma gratificação.

Samba, o cartão-postal
do Brasil
Um de nossos ritmos mais conhecidos, o samba começa a se desenvolver na Bahia, ainda no período colonial, espalha-se por todo o território nacional e, no século XX, torna-se uma das principais "marcas registradas" do Brasil.

Dança de umbigada
Em 1940, na música Samba da Minha Terra, o compositor baiano Dorival Caymmi já dizia: "Quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça ou doente do pé...". A palavra "samba" refere-se tanto ao ritmo musical como à dança. Até hoje a origem da palavra causa controvérsia entre os pesquisadores. A teoria mais aceita é de que "samba" vem de "semba", que em idioma banto significa "umbigada". A umbigada era uma dança praticada em Angola e no Congo. Os dançarinos formavam uma roda, com um dançarino no meio. Depois de executar alguns passos, ele escolhia uma pessoa em quem dava uma umbigada, a semba. Nas antigas rodas de escravos praticava-se a umbigada e, graças à miscelânea de etnias nas senzalas, aos poucos a dança foi influenciada pelas culturas de outras regiões da África.

Das senzalas às ruas do Rio de Janeiro
O ritmo que nasceu como dança de escravos, na Bahia, logo foi conquistando espaço na vida do brasileiro. Em São Paulo, o samba passou do domínio negro para o caboclo. No Rio de Janeiro, era inicialmente uma dança de roda entre os habitantes dos morros e evoluiu até o samba urbano carioca. Este, com o advento do fonógrafo, espalhou-se por todo o Brasil. O samba se projetou como gênero musical em 1916. A primeira música registrada como sendo do gênero foi Pelo Telefone, dos compositores Donga e Mauro de Almeida, gravada em 1917. A partir daí, o samba seguiu vários caminhos, adquirindo formas diferentes. E até hoje continua se transformando.

Samba-enredo
No carnaval, o destaque fica por conta do samba-enredo com refrão marcante e normalmente uma letra de fundo histórico. Criado por compositores de escolas de samba do Rio de Janeiro, a partir da década de 1930, o samba-enredo é o ponto de partida que define toda a estrutura dos desfiles de carnaval.
Samba-canção
No samba-canção a ênfase musical recai sobre a melodia, em geral romântica e sentimental. Surgido na década de 1920, o samba-canção era inicialmente cultivado por músicos do teatro de revista do Rio de Janeiro. Um dos primeiros sucessos desse estilo foi a música Ia iá ou Ai, io, iô de Henrique Vogeler, Marques Porta e Luis Peixoto, gravada pela cantora Araci Cortes, em 1928. Como eram lançados fora da época do carnaval, ficaram também conhecidos como "sambas de meio de ano".
Samba de breque e partido alto
Criado na cidade do Rio de Janeiro, na década de 1930, sua marca principal é uma parada repentina dada pelo cantor, seguida de frases bem-humoradas. O samba de partido alto aproxima-se muito do batuque africano. O ritmo é marcado por palmas e instrumentos musicais como chocalho, violão e cavaquinho.
ATO III

Cena II
Londres. Um quarto no palácio.
Entram o Rei Eduardo, Gloster, Clarence e Lady Grey.

REI EDUARDO
Mano de Gloster, o marido desta senhora, Sir John Grey, em Santo Albano veio a perder a vida. Suas terras, o vencedor as teve. Ela deseja ser reintegrada, agora, nessas posses. Penso que fora injusto lhe negarmos o que nos pede, em vista de ter sido morto esse gentil homem tão conspícuo quando em defesa dos direitos de York.

GLOSTER
Vossa Alteza faz bem em conceder-lhas; fôra desonra agir de outra maneira.

REI EDUARDO
É o que eu penso, também, mas esperemos.

GLOSTER (à parte, para Clarence)
Como! É assim? Pelo que vejo, a dama deverá conceder algo, primeiro, para que o rei lhe satisfaça a súplica.

CLARENCE (à parte, a Gloster)
Ele conhece o jogo; vede como sabe sondar o vento.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
Ficai quieto!

REI EDUARDO
Viúva, estudaremos com o devido cuidado vossa súplica. Voltai depois para saberdes a resposta.

LADY GREY
Gracioso soberano, é-me impossível suportar a dilação. Seja do agrado de Vossa Alteza responder-me logo. Vosso prazer me deixará contente.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
Assim, viúva! Eu vos prometo todas as terras, se o prazer dele realmente, vos deixar satisfeita. Sede firme; do contrário, apanhais um golpe certo.

CLARENCE (à parte, a Gloster)
Não receio isso, a menos que ela caia.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
Deus nos livre! Então o rei se aproveitara.

REI EDUARDO
Dizei-me viúva: quantos filhos tendes?


CLARENCE (à parte, a Gloster)
Creio que ele deseja um filho dela.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
Deixar-me-ei chibatear, se for só isso; ele preferiria obter dois filhos.

LADY GREY
Três, ao todo, gracioso soberano.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
Ficareis com mais um, se a ele cederdes.

REI EDUARDO
De lastimar seria, se eles viessem a perder o que o pai possuiu em terras.

LADY GREY
Sede, pois, generoso, mui temível monarca, e concedei o que vos peço.

REI EDUARDO
Senhores, um momento: é meu desejo sondar a inteligência desta viúva.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
Um momento vos damos; ora tendes momentos à vontade; até que os anos num momento vos deixem de muletas.

(AFASTA-SE COM CLARENCE)

REI EDUARDO
Senhora, amais, realmente vossos filhos?

LADY GREY
Tanto quanto a mim mesma.

REI EDUARDO
E que faríeis para que eles pudessem ser felizes?

LADY GREY
Suportaria toda adversidade.

REI EDUARDO
Readquiri, pois, a bem de vossos filhos, as terras que já foram do pai deles.

LADY GREY
É com esse fim que venho a Vossa Alteza.

REI EDUARDO
Vou dizer-vos o modo de as obter.



LADY GREY
Isso me obrigará ao serviço vosso.

REI EDUARDO
E que serviço me fareis em paga?

LADY GREY
O que mandardes, se me for possível.

REI EDUARDO
Decerto direis “não” ao meu pedido.

LADY GREY
Salvo se eu não puder satisfazer-vo-lo.

REI EDUARDO
Ser-te-á fácil fazer o que eu pretendo.

LADY GREY
Nesse caso farei quanto ordenardes.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
Ele insiste. Água mole em pedra dura...

CLARENCE (à parte, a Gloster)
Vermelho que nem fogo! A cera é mole.

LADY GREY
Porque parais, milorde? Que serviço me compete fazer?

REI EDUARDO
É muito fácil: amar a um rei.

LADY GREY
É fácil e está feito, porque eu sou vossa súdita.

REI EDUARDO
Devolvo-te, então, os bens que foram do finado.

LADY GREY
Contente, e com mil graças, me despeço.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
Contrato pronto; a dama faz mesuras.

REI EDUARDO
São os frutos do amor que eu tenho em mente.

LADY GREY
Sim, os frutos do amor, meu soberano.
REI EDUARDO
Sim, mas noutro sentido, é o que eu receio.
Que amor calculas que eu estou a pedir-te?

LADY GREY
Meu amor até à morte, minhas preces, meus agradecimentos irrestritos; o amor que puder ser pela virtude ao mesmo tempo dado e recebido.

REI EDUARDO
DIFERENTE ERA O AMOR EM QUE EU PENSAVA.

LADY GREY
Então não compreendi vossas palavras.

REI EDUARDO
Creio que as entendeis, agora, em parte.

LADY GREY
Jamais consentirá meu sentimento no que Vossa Grandeza me sugere, se é certo o que imagino.

REI EDUARDO
Sem rebuços direi que almejo me deitar contigo.

LADY GREY
Sem rebuços direi que é preferível viver numa prisão.

REI EDUARDO
Pois, nesse caso, não reaverás os bens do teu marido.

LADY GREY
Pois, nesse caso, todos os meus bens consistirão na minha honestidade, com cuja perda eu nada possuiria.

REI EDUARDO
Assim, teus filhos ficaram lesados.

LADY GREY
Assim, por Vossa Alteza ficaremos lesados eles e eu. Mas, poderoso senhor, esses alegres devaneios não vão bem com a tristeza do pedido que vos apresentei. Mandai-me logo despachada, dizendo “sim” ou “não”.

REI EDUARDO
Sim, se disseres “sim” ao meu pedido; não, se disseres “não” à minha súplica.

LADY GREY
Então não, meu senhor; já me retiro.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
A viúva está zangada; franze o cenho.
CLARENCE (à parte, a Gloster)
O mais desajeitado namorado de toda a cristandade.

REI EDUARDO (à parte)
Na maneira de olhar, lê-se modéstia; no discurso revela inteligência incomparável. Todas as suas perfeições exigem soberania. De qualquer maneira, foi feita para um rei. Será, portanto, minha amante, ou será minha rainha. Digamos que Eduardo te esposasse?

LADY GREY
Meu senhor, isso é fácil de ser dito, mas não fácil de ser posto em prática. Como súdita, eu sirvo para objeto de galhofa, mas me acho muito longe de servir para o posto de rainha.

REI EDUARDO
Meiga viúva, juro por meu trono que eu falei quanto almejo no mais íntimo da alma: possuir-te como o meu amor.

LADY GREY
É mais do que pudera prometer-vos. Sei que sou muito humilde para esposa de Vossa Alteza, mas bastante boa para tornar-me vossa concubina.

REI EDUARDO
Viúva, estais usando de malícia; o que eu pretendo é vos fazer rainha.

LADY GREY
Ofenderia Vossa Graça, acaso, ser chamado de pai pelos meus filhos.

REI EDUARDO
Não mais do que se minhas filhas viessem a te chamar de mãe. Tens alguns filhos, e – pela mãe de Deus – embora eu seja celibatário, alguns, também, possuo. Como é belo ser pai de muitos filhos! Não me retruques; vais ser minha esposa.

GLOSTER (à parte, a Clarence)
O padre já acabou a confissão.

CLARENCE (à parte, a Gloster)
Fez-se padre por pura malandragem.

REI EDUARDO
Mano, adivinhais o que falamos?

GLOSTER
A viúva não gostou; tem o ar tristonho.

REI EDUARDO
Julgaríeis estranho desposá-la?

CLARENCE
Com quem, senhor?


REI EDUARDO
Comigo mesmo, ora essa!

GLOSTER
Provocaria espanto de dez dias.

CLARENCE
Um dia mais do que perdura o espanto.

GLOSTER
Fôra infinito espanto assim tão grande.

REI EDUARDO
Podeis brincar, irmãos, quanto quiserdes; digo-vos que ela obteve bom despacho no que respeita às terras do marido.

(ENTRA UM NOBRE)

NOBRE
Vosso inimigo Henrique, meu gracioso soberano, foi feito prisioneiro e conduzido às portas do palácio.

REI EDUARDO
Levai-o para a Torre. Vamos, manos, saber quem o prendeu, a fim de obtermos informações seguras sobre o modo por que foi preso. Podeis ir, viúva. Meus senhores, tratai-a honrosamente.

(SAEM TODOS, MENOS GLOSTER).

GLOSTER
Eduardo trata honrosamente todas as mulheres.
Pudesse ele esgotado vir a ficar, medula, ossos e tudo, para que de seus rins ramo auspicioso não nascesse, capaz de separar-me da idade de ouro com que eu sempre sonho!
Mas, entre mim e o anseio de minha alma – enterrado que seja, finalmente, o direito do lúbrico Eduardo – está Clarence, Henrique, o moço Eduardo seu filho e todos quantos ainda se acham por nascer deles e que certamente se sentarão no trono antes que chegue minha esperada vez. Considerandos bem frios, estes, para os meus projetos!
Mas, afinal, tudo isto é simples sonho.
Assemelho-me a alguém que, divisando de um promontório a praia ambicionada, pretendesse igualar os pés aos olhos e amaldiçoasse o mar que o separasse da meta cobiçada, prometendo deixá-lo seco e, assim, abrir caminho.
Assim desejo o trono tão distante, e assim maldigo os meios que me impedem de chegar até ele, prometendo destruí-los, mas, com isso, mais não faço que me encantar com coisas impossíveis. Aguda tenho a vista, ambicioso demais o coração, para que possam igualá-los os braços e os recursos.
Bem; concordemos que não há coroa para Ricardo. Então, que outra ventura poderá conceder-lhe o mundo todo?
Transformarei em céu o belo colo de uma mulher, com ricos ornamentos o corpo cobrirei, e com palavras e olhares renderei damas galantes. Oh pensamentos miseráveis! Fora mais fácil conquistar vinte coroas.
O amor me repudiou ainda no ventre de minha mãe. De medo que eu ficasse sob o seu regimento delicado, peitou a natureza criminosa para que me deixasse o braço seco com galho sem seiva, e uma montanha invejosa no dorso me pusesse, de onde a deformidade zomba à grande do meu corpo, estas pernas me deixasse desiguais, afastando-me toda proporção, como ainda informe filho de urso, que à mão em nada se parece.
Sou tipo, acaso, para ser amado? Oh monstruosa ilusão, pensar desta arte!
Ora, se a terra só me proporciona a alegria do mando, do domínio, de subjugar pessoas bem formadas, seja o meu céu sonhar com a coroa.
Enquanto eu tiver vida, puro inferno vai ser o mundo, a menos que a cabeça firmada, assim, neste disforme corpo., me circunde coroa gloriosa.
Contudo, ainda não sei como alcançá-la, que muitas vidas entre mim e a pátria se interpõem, e eu me vejo qual pessoa que num bosque de espinhos se encontrasse, quebrando, a um tempo, espinhos, e por eles sendo quebrado, a procurar caminho, : mas dele cada vez mais se afastando, sem saber como possa obter ar puro, sempre enleado a lutar em desespero: desta arte eu me atormento, só com o fito de apanhar a coroa da Inglaterra.
Hei de livrar-me, ao fim, deste martírio, muito embora precise abrir caminho com um manchado sangrento. Sim, que eu posso vir a matar, matar, enquanto eu rio, gritar: Viva! Ao que o peito me compunge, banhar o rosto com fingidas lágrimas e adotar aparência condizente com qualquer situação. Mais marinheiros afogarei no mar do que a sereia; sem vida vou deixar muito mais gente que me olhar, do que o próprio basilisco; mostrarei a eloqüência de Nestor; como Ulisses, serei astuto e fino; qual Sinão, ganharei mais uma Tróia. Ao camaleão eu posso emprestar cores, muito mais que Proteu mudar de formas, ao próprio Maquiavel servir de mestre. Posso tudo isso e não consigo o trono? Ora, hão de ver que dele eu vou ser dono.

(SAI)
A SECA NA TERRA DOS BICHOS


Faltava chuva naquela região, os animais poderiam ter dificuldades com a falta de água.
Segundo o gavião maca ó e a seriema, não iria chover tão cedo. Somente na próxima primavera as chuvas voltariam.
O rei leão resolveu convocar uma reunião. Haveria necessidade de fazer um poço. Todos os bichos deveriam unir-se.
A juriti, a araponga e a pomba ficaram incumbidas de espalhar a notícia: “A união faz a força. Se ficarmos unidos não faltará água. Um grão de areia retirado na escavação também é um trabalho significativo.”
Esta foi a mensagem escolhida pela secretária corsa.
O cavalo resmungou:
- De qualquer jeito morrerei! Se não morrer carregando água para outros bichos, então morrerei de sede!
A preguiça saiu de sua árvore uma semana antes do dia da reunião a fim de chegar a tempo. Disse que depois iria se mudar para uma árvore bem próxima do poço.
A cutia passou por lá e deixou um recado: - Não morrerei trabalhando. Sou esperta e darei um jeito. Sei onde buscar água. Os outros também irão trabalhar por mim.
O macaco era desconfiado e pensou:
- Isto pode ser um velho truque do leão. Não tenho certeza se haverá volta para quem for.
Portanto, primeiro certificou-se do alto de uma árvore se os bichos estavam mesmo reunidos no local marcado. Entretanto todos estavam lá.
O local escolhido para cavar o poço foi à beira do regato do jaboti. O mestre tatu disse que ali nunca faltou água. Decerto havia uma mina subterrânea.
Todos os animais atenderam ao chamado e em poucos dias o poço estava pronto.
Como não havia eletricidade. A água era retirada do fundo do buraco, dentro de um balde de cerâmica puxado por um cipó. Havia algumas dificuldades, mas estava funcionado muito bem.
A cutia foi a única que não participou. Disse que estava muito ocupada. Ela se gabava da sua inteligência.
Os bichos em reunião resolveram castigar a cutia. Ela estava proibida de beber a água que minasse no poço.
O leão determinou que cada noite um bicho ficasse de guarda para não deixar a cutia beber água. Durante o dia não haveria problema, uma vez que alguém sempre estaria por perto.
Assim foi feito. Na primeira noite ficaria o urso. Era um animal robusto com braços enormes e daria uma patada na cutia caso ela se aproximasse.
A cutia chegou desconfiada. Primeiro certificou-se quem era o guarda. Quando percebeu que era o dorminhoco urso, até sorriu. Sabia onde arrumar um bom mel de abelha. Trouxe uma garrafinha
Veio cantando: - “Que mel delicioso, que melado cheiroso, até o polar vai se deliciar”.
O urso quis criar obstáculos, todavia estava sonolento. A cutia molhou a ponta de uma varinha com mel e deu para o urso experimentar:
- Prove que você vai ver que delícia. É mel de abelha Europa, até a comadre raposa gostou.
Além de tudo ela ainda fazia fofoca.
Ele não resistiu e pediu mais e mais. Logo caiu num sono profundo e a cutia levou uma garrafada de água.
O macaco já estava convocado para o segundo dia. Ficou muito atento em cima de um galho. Na primeira investida da cutia deu-lhe muitos tapas.
Entretanto a cutia roubou algumas bananas do bananal do orangotango seu rival. E veio com seu costumeiro papo:
- Estão tão cheirosas e são da espécie banana prata. Eu sei que o amigo macaco há muito não come desta banana. Prove só uma.
O macaco também não resistiu à lábia da cutia. Em pouco tempo ela partia com uma garrafada.
Na terceira noite foi convocada a onça por ser um bicho muito feroz e valente.
A cutia era demais esperta e ficou sabendo adiantado, pois os próprios bichos foram gozar na sua cara que desta vez ela passaria sede.
Era o que a cutia queria. Correu dar uma de dedo duro a um fazendeiro da região. A onça havia atacado seus bezerros e o homem queria ajustar contas com a felina. Não deu outra. A onça, a principio, farejou-os e quis enfrentá-los. Porém eram muitos caçadores com cachorros, armados até os dentes. Após quase levar chumbo, ela foi obrigada fugir em disparada.
O terreno ficou livre e a cutia encheu duas garrafadas de água.
O leão soube das diabruras da cutia e ficou furioso:
- Será que eu terei de ficar de plantão? Que bicharada mole e dorminhoca!
O cágado se prontificou ficar de vigilante. Alguns bichos caíram na risada:
- O jaboti e mais lento que a tartaruga! Ele não serve nem para vigiar duas lesmas!
Como ele insistiu e outros bichos estavam se acovardando o leão resolveu dar-lhe uma chance.
- Qual equipamento você precisa. – Perguntou o leão ao cágado.
- Não preciso de nada. Amanhã, vocês me trazem uma boa ração de tomates e verduras.
- Não subestime a esperteza da cutia. Ela é astuta, você verá.
- Deixe comigo, eu tenho meus recursos.
A mina era ótima e o poço estava cheio até a boca. O cágado se meteu na beirinha do poço. Ficou só com as costas de fora.
A cutia chegou atenta e não viu nenhum bicho na guarda. Ficou encucada:
- Será que desistiram da vigilância. Eu os venci. Puxa! Hoje até tem uma pedrinha para eu lavar os meus pés.
Enfarou-se de água e encheu a garrafa. Poderia ter ido embora. Mas sentou-se no barranco para banhar-se melhor. Depois acabou apoiando todo seu peso na pedra.
O cágado deu um profundo mergulho. Dentro d’água tinha ele suas qualidades. Ele nadava e mergulhava muito bem.
A cutia não sabia nadar e do outro lado o barranco era alto. Ela pererecou, pererecou, todavia acabou morrendo afogada.
O jabuti só teve o trabalho de empurrar o corpo sem vida para o barranco.





A FALSA APARÊNCIA


Simplício, um rapaz solteiro, bom aspecto, alto, de alguma posse, porém muito tímido. Ele queria casar. Entretanto não encontrava a moça certa, tinha alguma dificuldade devido seu acanhamento.
Foi aconselhado procurar uma fada que havia nas redondezas.
A fada indica uma lagoa no meio do mato onde três jovens costumavam nadar. Elas chegavam até ali voando.
Ela também o aconselha:
- Deverá chegar sorrateiramente para não assustá-las. Elas deixam suas penas sobre uma pedra. Escolha a melhor pena. Examine a qualidade e o estado de conservação. A pena mais bem cuidada pertence à moça mais prestimosa, mais fiel e melhor companheira. Portanto será essa que você deverá escolher. Não se iluda pelas aparências físicas das moças. Não se prenda às superficialidades e exterioridades das jovens. Não esqueça deste versinho:
“Se deitar olho à moça,
Sua aparência o seduz.
Todavia, se abrir melhor seus olhos,
Percebê-la-á sobre uma outra luz.”
- Se escolher a pena correta, ela logo se identificará com você. Somente uma das moças sentirá plenamente realizada e nunca tentará ir embora.
Ele chega bem cedo e espera as moças pousarem à margem da lagoa. Elas deixam suas penas enfiadas em orifícios existentes em uma pedra.
Porém ele não se decide apanhar a pena em melhor estado de conservação.
Ele espiona secretamente as três jovens seminuas voltarem do banho. Elas vestem suas roupas quentes e pegam suas penas e partem para a terra dos devaneios.
Ele já deveria ter chegado até a pedra e escolhido a pena com melhor trato. No entanto ele resolveu conhecer primeiro as três jovens e fica apaixonado pela mais formosa. Ele é atraído por aquela que tem o contorno mais refinado, por conseqüente o corpo mais perfeito.
Ele marca as posições de onde as três jovens retiram suas penas e depois vai dar uma checada na pedra.
Cada pena ficou com a ponta cravada em um pequeno orifício. Nesses orifícios estão gravados os nomes das jovens. Examina atentamente aquele buraco da direita, justamente o pertencente à pena da moça que mais chamou sua atenção.
Ela chamava-se Perfildosa. Logo vem a sua mente. Perfil de mais belo perfil. O Osa deveria referir-se a formosa, sim, ela era a mais deleitosa.
A segunda chamava-se Pacita. Seria de paciência ou pacifica? Somando o ita da dureza da pedra, do ferro, seria uma garota de paz, mas de muita resistência.
A terceira chamava-se Sóbria. Entendeu-a como uma moça que se sente melhor sozinha. Como uma planta solitária. Embora tivesse uma relação com sóbrio.
Conforme instrução da fada, ele não deveria comparar as jovens, e sim, comparar as penas. Ele errou e primeiro fez alguma comparação entre as jovens. Como elas estavam um pouco afastadas, a escolha foi de modo superficial, somente pelas aparentes estruturas físicas.
No dia seguinte, nosso jovem ficou escondido. Deixa as moças colocarem suas penas nos orifícios da pedra e atirarem-se às águas.
Em seguida, aproximou-se do local das penas. Ele agora iria tentar escolher a pena que mais lhe chamasse a atenção. Seria pelo estado de conservação, pela aparência geral, pelo tamanho, pela solidez e resistência da raque. Ou seria pela quantidade de barbas, se as mesmas eram limpas, se não havia falhas, se não estavam enroladas ou tortas.
Ele examina primeiro a pena pertencente à moça que chamara sua atenção. Percebe ausência de algumas barbas. Algumas estão grudadas entre si. Presta atenção no eixo. Depois examina outra pena e percebe uma raque muito mais forte, como fosse feito de um material melhor. As barbas estão bem conservadas, não há falhas, estão completas e esticadas. Há uma perfeita continuidade. Ele esfrega essa pena em sua barba conforme instruíra a fada. Ele percebe que essa pena é uma pena especial. A moça recebe o estímulo e tenta aproximar-se. Porém ele a recoloca no orifício.
Agora ele inicia o exame da terceira pena. Porém, mal tem tempo de segurá-la, o pássaro conhecido como bente vi, como fosse um guardião, ataca-o com fúria. Ele assusta e, com receio de chamar atenção das moças, devolve-a ao seu lugar.
As jovens púdicas sentem sensações estranhas quando suas penas são estimuladas. Porém elas não conseguem decifrar o que acontece.
Todavia o homem é atacado pelo cupido. Ele esquece os conselhos e opta pela pena da mulher mais formosa. Ele a toma e se esconde no mato a espera que a dona a procurasse para voar.
Elas terminam o banho e procuram suas penas. Pacita e Sóbria levantam vôo e vão embora um tanto amedrontadas. Perfildosa não encontra sua pena e fica desesperada. No entanto ele logo vem acalmá-la:
-Você foi a escolhida. Agora você irá a minha casa. Nós ficaremos noivos e marcaremos nosso casamento para bem breve. Sua pena me pertence e você estará presa ao coração do homem que a possui.
A moça aos poucos compreende a situação. Ela também deverá amar o detentor da pena.
Ele leva a moça para sua casa e esconde a pena numa caixinha no alto, próximo ao telhado.
Começam os preparativos para o casamento. Tudo transcorria normalmente. Porém a moça sente saudades de sua terra e de sua família.
Ela nota aquela caixa amarrada no telhado e sente uma curiosidade de ver o que ela guarda.
O rapaz saiu para o trabalho e ela arruma uma escada e mexe na caixa. Reencontra sua pena. Experimenta e descobre que tem condições de voar.
Antes de partir escreve-lhe um bilhete:
“Eu sigo para Terra dos Devaneios. Se me amas de fato, deverás descobrir onde ela fica e buscar-me, como prova do teu grande amor.”
Ele volta pedir socorro à fada. Esta, por sua vez, repreende-o:
- Eu o aconselhei escolher a melhor pena, pela resistência e grossura da raque e pelo melhor acabamento e conservação das cerdas. Nunca deveria observar as jovens e influenciar-se pela sedução.
- Mas eu lhe darei mais uma chance. Quem conhece bem a Terra dos Devaneios e a nossa amiga lua. Ela, com seus raios prateados, conhece todos os rincões da terra.
O rapaz no desespero parte para consultar a lua. Somente encontra uma velhinha:
- Ela voltará na próxima manhã. Esconda-se neste quarto, pois ela costuma chegar com muita fome.
Não demorou e a lua adentrou-se à casa exausta e faminta.
- Está cheirando carne humana. Sinto que ela está próxima.
- Não, minha filha. Você está com muita fome. Almoce bastante e verá como o odor desaparece.
Após alimentar-se à vontade, a lua foi informada da presença do homem:
- Eu ilumino todos os recantos da terra. Porém nunca avistei esse lugar. Deve ficar na região polar. Somente os raios solares iluminam-na no verão astral.
O moço partiu à procura do sol. Chegou ao começo do dia e novamente ficou escondido em um quarto escuro. Ele só retornaria à noite.
O sol voltou para casa e reclamou do cheiro humano. Novamente sua mãe deu-lhe bastante comida.
Quando perguntado se conhecia a Terra dos Devaneios, respondeu:
- Somente o vento consegue atingir aquela região. Ela fica escondida atrás de uma enorme cordilheira.
O moço então segue à procura do vento. O vento informa que somente seu primo Minúvio conhecia aquela terra:
- Agasalhe-se bem e vista esse capuz. Tome carona na minha garupa. Quando sentir um frio quase irresistível no rosto e nos pés, avise-me para eu parar.
Assim foi feito. Quando o rapaz estava com os pés quase congelados reclamou:
- Sim, já chegamos. Eu parto para outras terras. Você tomará carona na garupa de meu primo Minúvio.
O rapaz encontrou-se com o vento chamado Minúvio:
- Você teve sorte. Agora mesmo eu sigo para aquela cordilheira. Monte em minha garupa e feche os olhos. Quando sentir alguns jatos de água quente em seu rosto, abra os olhos. É sinal que lá chegamos.
O rapaz obedeceu direitinho. Quando abriu os olhos deparou com uma terra maravilhosa. Havia bastante água brotando de gêiser. Ficava numa cadeia de montanhas, com muito verde e florida.
Saltou da garupa e foi procurar a moça. Ele encontra uma sábia senhora que se diz protetora e conselheira das jovens.
- Então, veio procurar sua noiva? Elas estão muito ocupadas. Em cima deste armário estão as três penas. Você poderá examinar detalhadamente as três. Se escolher a pena correta, eu acredito que a jovem seguirá com você.
Desta vez o viajante solteiro escolheu a pena correta.
Assim que a tocou e acariciou seu rosto com as barbas da pena, a jovem Pacita apareceu e prontificou-se viajar de volta até sua terra, ou poderiam ficar morando naquela linda cordilheira.
POP ART

Movimento principalmente americano e britânico, sua denominação foi empregada pela primeira vez em 1954, pelo crítico inglês Lawrence Alloway, para designar os produtos da cultura popular da civilização ocidental, sobretudo os que eram provenientes dos Estados Unidos.
Com raízes no dadaísmo de Marcel Duchamp, o pop art começou a tomar forma no final da década de 1950, quando alguns artistas, após estudar os símbolos e produtos do mundo da propaganda nos Estados Unidos, passaram a transformá-los em tema de suas obras.
Representavam, assim, os componentes mais ostensivos da cultura popular, de poderosa influência na vida cotidiana na segunda metade do século XX. Era a volta a uma arte figurativa, em oposição ao expressionismo abstrato que dominava a cena estética desde o final da segunda guerra. Sua iconografia era a da televisão, da fotografia, dos quadrinhos, do cinema e da publicidade. Com o objetivo da crítica irônica do bombardeamento da sociedade pelos objetos de consumo, ela operava com signos estéticos massificados da publicidade, quadrinhos, ilustrações e design, usando como materiais principais, tinta acrílica, poliéster, látex, produtos com cores intensas, brilhantes e vibrantes, reproduzindo objetos do cotidiano em tamanho consideravelmente grande, transformando o real em hiper-real. Mas ao mesmo tempo que produzia a crítica, a Pop Art se apoiava e necessitava dos objetivos de consumo, nos quais se inspirava e muitas vezes o próprio aumento do consumo, como aconteceu por exemplo, com as Sopas Campbell, de Andy Warhol, um dos principais artistas da Pop Art. Além disso, muito do que era considerado brega, virou moda, e já que tanto o gosto, como a arte tem um determinado valor e significado conforme o contexto histórico em que se realiza, a Pop Art proporcionou a transformação do que era considerado vulgar, em refinado, e aproximou a arte das massas, desmitificando, já que se utilizava de objetos próprios delas, a arte para poucos. Principais Artistas:
Robert Rauschenberg (1925) Depois das séries de superfícies brancas ou pretas reforçadas com jornal amassado do início da década de 1950, Rauschenberg criou as pinturas "combinadas", com garrafas de Coca-Cola, embalagens de produtos industrializados e pássaros empalhados.
Por volta de 1962, adotou a técnica de impressão em silk-screen para aplicar imagens fotográficas a grandes extensões da tela e unificava a composição por meio de grossas pinceladas de tinta. Esses trabalhos tiveram como temas episódios da história americana moderna e da cultura popular.

Roy Lichtenstein (1923-1997). Seu interesse pelas histórias em quadrinhos como tema artístico começou provavelmente com uma pintura do camundongo Mickey, que realizou em 1960 para os filhos. Em seus quadros a óleo e tinta acrílica, ampliou as características das histórias em quadrinhos e dos anúncios comerciais, e reproduziu a mão, com fidelidade, os procedimentos gráficos. Empregou, por exemplo, uma técnica pontilhista para simular os pontos reticulados das historietas. Cores brilhantes, planas e limitadas, delineadas por um traço negro, contribuíam para o intenso impacto visual.
Com essas obras, o artista pretendia oferecer uma reflexão sobre a linguagem e as formas artísticas. Seus quadros, desvinculados do contexto de uma história, aparecem como imagens frias, intelectuais, símbolos ambíguos do mundo moderno. O resultado é a combinação de arte comercial e abstração.

Andy Warhol (1927-1987). Ele foi figura mais conhecida e mais controvertida do pop art, Warhol mostrou sua concepção da produção mecânica da imagem em substituição ao trabalho manual numa série de retratos de ídolos da música popular e do cinema, como Elvis Presley e Marilyn Monroe. Warhol entendia as personalidades públicas como figuras impessoais e vazias, apesar da ascensão social e da celebridade. Da mesma forma, e usando sobretudo a técnica de serigrafia, destacou a impessoalidade do objeto produzido em massa para o consumo, como garrafas de Coca-Cola, as latas de sopa Campbell, automóveis, crucifixos e dinheiro.
Produziu filmes e discos de um grupo musical, incentivou o trabalho de outros artistas e uma revista mensal.
CULTURA E INDÚSTRIA DA VIOLÊNCIA
Bruno Luiz Pelikan Teixeira

RESUMO

Darwin já dizia que só sobrevivem os mais bem preparados. E na história da humanidade não é diferente, a busca pelo poder, glória e fortuna corrompem os humanos, e por trás disso sempre há a violência. Dizer que esta nunca existiu ou que só existe agora é não considerar que a humanidade se dá através de dominação de classes, e que esta sempre houve desde os mais primórdios resquícios de vida humana perpetuado por diversas formas de violência. Esta é sempre a ponte para algum interesse, é o elo, seja para buscar o poder, capital, glória, prazer, etc. Ninguém pratica a violência por praticar, e sim para se alcançar um fim, e quando enxergamos isso, vemos que ela está muito mais presente do que possamos imaginar. Quiçá o que nos faz preocupar com esse tema somente agora, seja o fato da violência estar batendo em portas que antes não batia. Se antes a violência era um privilégio das classes nobres para perpetuar a dominação e o status quo, hoje, podemos falar em democratização da violência, e o que vai, volta, e classes que antes não tinha essa arma, agora a possuem, e classes que jamais achavam que ela se voltaria contra si, agora se voltam.

Palavras-chave: Humanidade. Poder. Violência. Dominação. Classes.


1. INTRODUÇÃO

Pensar na humanidade sem pensar em violência é absolutamente inconcebível. Ademais, achar que a violência é fato novo é pensamento individualista de quem nunca se preocupou com a sociedade como um todo e nunca saiu de seu casulo. A história dos humanos é marcada por violência, e digo violência não apenas no sentido mais óbvio e táctil, da violência física, escancarada, vista em guerras e massacres por aí afora. Há de se pensar além desse conceito e visualizar outras formas de violência, e outros fins a qual ela se destina, usadas pelos homens.
É preciso abster de pré-conceitos estigmatizantes hoje vendidos pela mídia, como por exemplo, de que a violência é algo inerente às classes populares, e de que em sua maioria é praticada por jovens negros favelados.
A violência está em todos os cantos, seja rico ou pobre; sob diversas formas, com diversas características e causas, e conseqüentemente, deve ser tratada com diagnósticos díspares, por isso sua tamanha complexidade. Falaremos, aqui, da difusão da violência nos dias atuais, do cerne, e não somente no que mais comumente se conhece como violência, aquela escancarada, a que se traduz em crimes. Passaremos por conseguinte à análise do que pode se dizer que é o ponto chave para se entender melhor como a violência funciona: a instrumentalidade. Inobstante, antes de concluir esse breve trabalho, falaremos da violência criminal, aquela que nos faz presente nos dias-dias, traduzida em homicídios, tráfico de armas e drogas e etc, estigmatizada como aquela produzida pelos pobres e favelados.

2. DIFUSÃO DA VIOLÊNCIA

Desde os mais antigos resquícios de sociedade do nosso antepassado, vemos presente a violência, como por exemplo, no feudalismo. Esta era usada para manter o status quo da divisão de classes. Através de violência como: miséria, fome e o medo, os senhores feudais mantinham a dominação sob os servos e camponeses, ou em outras palavras, essa sociedade era “caracterizada pela segregação dos homens em estratos sociais hierarquizados” (RIBEIRO, p. 43).
Como bem diz Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Professor da UFRJ e autor de um artigo relacionado ao tema, foi com a democracia e a formação de vida urbana propriamente dita que o homem desvinculou-se das relações de dominação pessoal, marcas do feudalismo, ademais, é na cidade que o homem adquire a emancipação material e moral:

Os cidadãos urbanos usurparam o direito de dissolver os laços da dominação senhorial – e esta foi a grande inovação, de fato, a inovação revolucionária das cidades medievais do Ocidente em face de todas as outras – a quebra do direito senhorial. Nas cidades centro e norte-européias originou-se o conhecido dito: “o ar da cidade liberta”. (WEBER, apud, RIBEIRO, p. 43)

Ribeiro, antes de se aproximar do problema da violência nos dias atuais, fala em uma inclusão urbana como uma necessidade tendo em vista a realidade de “urbanização sem cidades”. Tal evento se dá pelo fato de haver um descompasso entre três focos que deveriam coexistir: o democrático, o liberal e o social, representados respectivamente pela cidade (polis), cidadania (civitas) e sociedade (societas). Desse modo, o descompasso existente se dá pelo fato de que se aumenta a cidade, mas a cidadania (mutuo respeito) permanece hipertrofiado pela inexistência de uma sociedade (sistema de proteção social contra a ameaça do livre jogo do mercado).
Queiroz afirma:

[...] a dinâmica urbana da cidade latino-americana tem como base a apropriação privada [...], fazendo com que os segmentos já privilegiados desfrutem de mais privilégios, [...] ao mesmo tempo em que grande parte da população, formada pelos trabalhadores, é espoliada, por não terem reconhecidas socialmente suas necessidades de consumo habitacional (moradia e serviços coletivos), inerentes ao modo urbano de vida. O resultado é a urbanização sem cidades. (RIBEIRO, p. 43)
Assim sendo, o autor afirma que a carência habitacional está no centro do problema urbano brasileiro, uma vez que grande parte da população, por ser excluída do mercado imobiliário, é inserida marginalmente nas cidades.
Na mesma linha, a segregação e a exclusão habitacional favorece uma vulnerabilização social, decorrente da precarização do emprego, do desemprego e, conseqüentemente, ocorrendo a perda de renda. Processo que se soma ao empobrecimento social, fruto da desestruturação da célula mãe da sociedade, a família, do isolamento social e da desertificação cívica dos bairros abastados e marginalizados. O resultado de tudo isso já conhecemos: abre-se a porta para o surgimento de grupos de organização comunitária e autônoma com o intuito de compensar o abandono pelo Estado, e paralelo a isso, decorre um pluralismo jurídico, onde o direito não-oficial conflita com o oficial que muitas vezes lá não chega. Estamos falando do cerne da célula crime organizado, do tráfico e da difusão da violência. Queiroz com brilhantismo relaciona isso ao feudalismo, onde antes era uma relação de dominação pessoal com o senhor feudal, e hoje, analogicamente, poderíamos falar: na periferia, uma relação com os senhores donos dos morros; e nos núcleos das metrópoles (a cidade alta segundo Queiroz) com os senhores donos do capital e das outras formas de riqueza. (RIBEIRO, p. 43)

3. INSTRUMENTALIDADE DA VIOLÊNCIA

Aqui talvez esteja a mais bem colocada caracterização da violência. Hannah Arendt, teórica política alemã, citada em Violência Extra e Intramuros, artigo de Alba Zaluar e Maria Cristina Leal, diz o seguinte: “a violência é um instrumento e não um fim” (ARENDT, apud, LEAL; ZALUAR, 2001, p. 147), ou seja, ela é um meio de se alcançar algo, seja dominação, status, poder, enfim, ela não é um fim em si mesmo, não se faz violência puramente por fazê-la.
Tavares dos Santos, também citado nesse artigo, diz ser a “violência um dispositivo de controle, aberto e contínuo.” e também como um “dispositivo de excesso de poder” (SANTOS, apud, LEAL; ZALUAR, 2001, p. 148)
Quando pensamos em tráfico de drogas, homicídios e etc, vemos com nitidez a instrumentalidade da violência em sua forma mais simples, a de ser meio para a busca do capital do tráfico de drogas e armas. É com base na violência, amedrontando e assediando os jovens que os donos dos morros os trazem e convencem a entrarem para o mundo do tráfico.
Não menos diferente, é a instrumentalidade da violência nas guerras promovidas durante a história da humanidade. Ali, o que se pretendia era o poder, o status, a dominação, e o capital, sempre por trás de senão todas, de grande parte dos fins queridos através da violência. Aqui vale a pena fazer uma observação para o filme O senhor das Armas, baseado em fatos reais, com Nicolas Cage, contrabandista de armas, e que fazia negócios bilionários com chefes do poder executivo de países afora, que bem retrata essa idéia de instrumentalidade da violência em busca do capital com os dizeres do protagonista: “Admito que um tiroteio é bom para os negócios, mas queria que as pessoas atirassem e errassem. Mas que continuassem atirando”.

4. VIOLÊNCIA CRIMINAL

Restringindo o campo da violência, passamos à análise da violência criminal (homicídios, roubos, furtos, tráfico de drogas e armas, etc), e ao falar dela logo vem o questionamento sobre sua origem, suas causas. No entanto, falar de violência e crime não são fáceis. Sobretudo, é necessário evitar a armadinha da generalização. (SOARES, 2006, p.4)
Luiz Eduardo Soares, autoridade em segurança pública, com brilhantismo e clareza ímpares, diz que não existe o crime, no singular. “Há uma diversidade imensa de práticas criminosas, associadas a dinâmicas sociais muito diferentes. Por isso, não faz sentido imaginar que seria possível identificar apenas uma causa para o universo heterogêneo da criminalidade.” (SOARES, p.4)
Sobre a impossibilidade da generalização, Soares exemplifica:

“[...] roubos praticados na esquinas por meninos pobres, que vivem nas ruas cheirando cola, abandonados à própria sorte, sem acesso à educação e ao amor de uma família que os respeite, evidentemente expressam esse contexto cruel [...] varejo de drogas, nas periferias: juventude ociosa e sem esperança é presa fácil para os agenciadores do comércio clandestino de drogas, não é difícil recrutar um verdadeiro exército de jovens quando se oferecem vantagens econômicas muito superiores ao mercado comum e benefícios simbólicos que valorizam a auto-estima, atribuindo poder aos excluídos [...]. Por outro lado, os operadores do tráfico de armas, que atuam no atacado, lavando dinheiro no mercado financeiro internacional, não são filhos da pobreza ou da desigualdade. Suas práticas são estimuladas pela impunidade. Em outras palavras, pobreza e desigualdade são e não são condicionantes da criminalidade, dependendo do tipo de crime, do contexto intersubjetivo e do horizonte cultural a que nos referimos”. (SOARES, p. 4;5)

Não basta, porém, apenas falar sobre a violência sem apresentar quaisquer perspectivas para reduzi-la. Soares disserta dizendo que deve ser feita através de políticas preventivas e repressivas. Políticas preventivas seriam políticas que não são estruturais e que produzem resultados em curto prazo, e, portanto, não agem sobre as macroestruturas socioeconômicas do país. Alerta desde então, que políticas preventivas podem ser eficientes mesmo não atuando sobre macroestruturas, e argumenta: dizer que estaria enxugando gelo é equívoco (SOARES, 2006, p.5;6). Admite, no entanto, que são políticas superficiais e baratas, e que não impedem o retorno do problema que se deseja evitar, mas categoriza: mas elas salvam vidas, reduzem danos e sofrimento e tornam a vida mais feliz (SOARES, 2006, p.6).. E por conseguinte alega:

“em segurança pública, as conseqüências tornam-se causas no movimento subseqüente do processo social: determinadas condições favorecem a prática de crimes; os crimes expulsam empresas, o que aumenta o desemprego, ampliando as condições para o crescimento de certas formas de criminalidade, etc. E o ciclo dá mais uma volta em torno do mesmo eixo. (SOARES, p. 6)

Disso se conclui que o crime se torna a própria causa do crime (SOARES, 2006, p.7). Desse modo, atuando sobre o crime, interrompe esse carrossel perverso, pois, menos crime é igual a melhor qualidade de vida, melhor economia, melhor vida social, e conseqüentemente, menos crime. Portanto, ainda que haja superficialmente sobre as causas imediatas daqueles, reduzindo o número de vítimas, a taxa de risco, o grau de propagação do medo, e a sensação de insegurança, acabam por ser muito mais que enxugar gelo. (SOARES, 2006, p.7)
No mais, o que deve sempre ser evitado é o problema da generalização e unificação de medidas. Não há modelos únicos e gerais, aplicáveis em todo o país (SOARES, 2006, p.7). Cada região, cada cidade, deve possuir suas próprias ações contra a criminalidade, pois, por exemplo, causas e condições para a disseminação da violência criminal que incidem na região Sudeste, não são as mesmas que incidem na região Nordeste. Há de ser observado cada território com especificidade e com foco diferenciado, e talvez esteja aí a grande idéia de como agir contra a violência criminal, ou seja, quanto aos diversos territórios brasileiros, deve-se tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade, como bem dizia Aristóteles ao dissertar sobre o princípio da igualdade, dito como substancial, e não meramente formal.

5. CONCLUSÃO

No mundo atual, moderno, e ferozmente veloz, o que não vemos mais são os laços de amizades e de mútuo respeito entre os que aqui vivem. Não querendo simplificar um tema que não é, e sem querer ser superficial, penso que há uma grande causa por trás de todos esses problemas relacionados com a violência: A compaixão e a solidariedade que a cada dia se soçobra em nossa sociedade, se é que pertencemos a uma. Diuturnamente aumenta-se o individualismo, e viver em sociedade, efetivamente, começa a ficar em segundo plano. Por trás disso, todo um aparato complexo e ao mesmo tempo simples: o capitalismo, em sua mais selvagem concepção, onde tudo gira em torno do status e dinheiro, numa soma perversa em busca do poder, e ora, se há alguém que possui muito poder, certamente haverá alguém que nada possui, e daí decorre a tal dominação que falamos.
Ademais, o que não podemos é isolar, ignorar e tratar com indiferença classes teoricamente mais carentes financeiramente. Estigmatizar que na favela só existe criminosos é o primeiro passo para continuar com esse vício pré-conceituoso. Moradores de lá, que segundo estatísticas, em sua maioria, jovens e negros, entram no mundo do crime, não o faz por opção, mas por não enxergarem outro caminho. Cabe aqui exemplificar com uma máxima antiga, daquelas que se escuta de seus avôs que diz o seguinte: Se colocarmos em um recém-nascido um óculos azul, e assim deixar crescer e permanecer com eles, ela enxergará o mundo como se fosse azul. Portanto, infelizmente, jovens que vivem no mundo do tráfico e de drogas, não conseguem ver outra realidade senão aquela que estão inseridos, e enxergam esta, como a única realidade.
Inobstante, não cabe dizer que a violência é algo inerente às classes populares. Muito pelo contrário, a violência sempre existiu (através da fome e miséria) e sempre esteve ligada às classes dominantes, até porque é por ela que se dá a dominação de classes. A violência não é, e nem nunca foi fato novo, e talvez só esteja recebendo tratamento diferente nos dias de hoje porque nunca havia batido às portas da classe média, amedrontado-a. E o porquê disso é a negação do sentimento coletivo da cooperação, da colaboração e da solidariedade, ante uma ideologia imposta de competição e de luta pela sobrevivência entre homens, em que o que se busca é glória, poder e capital.






REFERÊNCIAS

SOARES, Luiz Eduardo. Segurança Pública: presente e futuro. São Paulo, v. 20, n. 56, jan./abr. 2006.

ZALUAR, Alba; LEAL, Maria Cristina. Violência Extra e Intramuros. São Paulo, v. 16, n. 45, fev. 2001.

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Cidade e Cidadania: Inclusão urbana e justiça social. São Paulo, v. 56, n. 2 abr./jun. 2004.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, SP, BR: Malheiros Editores, 2002. 3a.ed.

O Senhor das Armas. Produção de Andrew Niccol. Nord, France: EMC Produtora e Arclight Films Distribuidora, 2005. DVD (122 min.): son., color., legendado. Port.
O NAFTA como embrião da ALCA

Por Felipe Corrêa 23/10/2002 às 16:42
Em tempos de discussões e polêmicas em torno dos benefícios do livre comércio, nada mais interessante que fazer uma reflexão - baseada em parâmetros de comparação concretos e indicadores reais - para saber se os acordos que visam a abertura do mercado entre países são vantajosos e, se o são, para quem são.

O NAFTA como embrião da ALCA

por Felipe Corrêa (Ação Local por Justiça Global)

Em tempos de discussões e polêmicas em torno dos benefícios do livre comércio, nada mais interessante que fazer uma reflexão - baseada em parâmetros de comparação concretos e indicadores reais - para saber se os acordos que visam a abertura do mercado entre países são vantajosos e, se o são, para quem são.
Devemos convir com o disse Bill Clinton, quando se referiu à ALCA (Área de Livre Comercio das Américas) como uma extensão do NAFTA (North American Free Trade Agreement), que é o tratado de livre comércio da América do Norte. Por isso, nada mais esclarecedor do que uma análise dos fatos que deram seqüência à assinatura do NAFTA e suas conseqüências, para tentar calcular qual seria o impacto de um acordo com as proporções da ALCA.

A comparação entre o NAFTA e a ALCA é bastante coerente pois o NAFTA é um acordo de livre comércio entre países com diferenças de produção, valor de mão de obra, condições sociais, econômicas e legislação trabalhista e ambiental. Da mesma forma que o NAFTA integrou três países com realidades bastante diferentes; dois países bem desenvolvidos economicamente ¬ os Estados Unidos e o Canadá ¬ e um subdesenvolvido, ou “emergente” como preferem chamar os liberais ¬ o México; a ALCA tende a tomar proporções semelhantes no que diz respeito às conseqüências sobre o mercado, as populações e o meio ambiente.

O NAFTA é um acordo de livre comércio que estabelece uma eliminação tarifária progressiva, de forma que após dez anos do início do acordo (1994), as barreiras comerciais deixariam de existir. Dentro das regras estabelecidas para o acordo, visou-se principalmente proteger as economias dos países envolvidos e impedir que outros países pudessem ter acesso ao mercado norte americano por meio desse acordo. Na área de serviços, o NAFTA prevê uma abertura comercial, de forma a permitir o comércio entre fronteiras e ainda uma garantia de direitos de propriedade intelectual e tratamento diferenciado para os setores têxtil, de vestuário, automotriz, de energia, de agricultura, de transporte terrestre e de telecomunicações.

Pelas regras do NAFTA, as mercadorias importadas que entrarem num país, vindas de um outro país integrante do NAFTA, devem ter os mesmos tratamentos que os produtos domésticos daquele país. Este tratamento não se estendeu para contratos públicos nem para os subsídios.

A ALCA é uma proposta de extensão do NAFTA para todos os países do continente americano, com exceção de Cuba. Caso seja aprovada, a ALCA será a maior área de livre comércio já feita no mundo e por razão de suas proporções, atingirá praticamente todos os cidadãos das nações que fizerem parte dessa zona de livre comércio.

A ALCA visa promover uma zona de livre comércio e seus objetivos e princípios são: a integração econômica e dos mercados de capitais, a concordância com as normas da OMC (Organização Mundial do Comércio), a eliminação de quaisquer barreiras que representem obstáculos ao comércio ou ao investimento estrangeiro e de subsídios de exportação de produtos agrícolas, a criação de uma estrutura legal para proteção dos investidores e seus investimentos, a criação de novas medidas para contratos públicos e novas negociações na inclusão de serviços.

Como o NAFTA, a ALCA será um acordo de livre comércio que não terá incluído dentro de seu conteúdo, qualquer salvaguarda que estabeleça a proteção de direitos trabalhistas, direitos humanos, do meio ambiente, das normas de saúde ou cuidados com as condições sociais das populações onde o acordo se fizer valer. Os cidadãos, quem mais sofrerão o impacto desse acordo, estão de fora do processo de negociação, que está sendo feito em grande parte por representantes de grandes conglomerados corporativos e os principais chefes de Estado das nações envolvidas no acordo. A maioria das negociações não esta sendo levada a público de forma a esclarecer os pormenores desse acordo.

A ALCA, nos mesmos parâmetros do NAFTA, concederá novos e importantes direitos às empresas transnacionais, inclusive nas áreas de previdência social, assistência médica, educação, serviços como proteção ao meio ambiente, distribuição de água, recursos naturais, cultura e serviços do governo.

Os defensores das práticas de livre comércio e as grandes empresas têm freqüentemente dado vários argumentos favoráveis à abertura de mercado e citam o crescimento da economia dos países que já praticam o livre comércio como um exemplo a ser seguido.

De acordo com as falas do presidente americano George Bush na Cúpula das Américas ocorrida em Québec, ele é a favor da criação da ALCA, tomando como exemplo os crescimentos e desenvolvimentos apresentados pelas nações envolvidas no NAFTA. Outros exemplos apresentados em favor do livre comércio são o aumento do fluxo de capital do México depois do início do NAFTA, a criação de empregos e o aumento considerável nas exportações. O aumento de investimentos estrangeiros no México que subiu de U$ 4,4 bilhões em 1993 para U$ 11,8 bilhões em 1999, de acordo com um relatório do Banco Mundial [1], e ainda o crescimento nas exportações mexicanas feitas aos EUA, que cresceram praticamente 170% no período de 1994 a 2000 [2], são fatos “concretos” que justificam, na concepção liberal, o livre comércio proporcionado pelo NAFTA e mostram que houve benefícios, inclusive para o México, o país menos desenvolvido economicamente e o mais frágil entre os componentes do NAFTA.

A competitividade e os mercados também seriam favoráveis aos cidadãos que poderiam comprar produtos mais baratos, beneficiando-se das reduções de custos feitas pelas empresas, visto que estas reduções seriam refletidas nos produtos em forma de descontos.

Ao contrário da maioria das críticas que estão sendo feitas contra a ALCA, a consolidação dessa zona de livre comércio, muito mais do que uma tentativa de dominação dos EUA para com os outros países do continente americano, é uma relação de dominação das corporações sobre os indivíduos e o meio ambiente.

O que veremos a seguir são dados que mostram que depois da implantação do NAFTA, a condição dos trabalhadores dos três países envolvidos no acordo piorou. A transferência da produção das empresas dos EUA e Canadá para o México, possibilitou às corporações minimizarem gastos com mão de obra e produzirem com menor custo para o comércio. Com essa saída das grandes empresas dos EUA e Canadá, milhares de trabalhadores perderam seus empregos e as empresas que continuaram por lá, iniciaram um processo de ameaça e chantagem com seus funcionários e sindicatos, dizendo que se não abrissem mão de salários altos ou determinados benefícios, se mudariam para o México, deixando todos desempregados.

Isso contribuiu para a piora das condições de trabalho nos dois países mais desenvolvidos dentro do acordo. Para o México, a situação foi ainda pior. Com a transferência das industrias para seu território, as cidades de fronteira com os EUA tiveram os empregos dobrados nas chamadas “maquiladoras”, locais de trabalho precário, normalmente indústrias que recebem materiais e peças para montagem e reenviam o produto ao mercado de origem, contando com os baixos custos da mão de obra mexicana e da legislação trabalhista nada rigorosa.

Atraídas pela mão de obra de 10 a 15 vezes mais barata que a americana, as corporações americanas e canadenses transnacionalizaram sua produção para o México e passaram a se beneficiar do tratado de livre comércio para produzir no México e vender nos EUA ou no Canadá, barateando os custos de produção e poluindo um país que tem leis frágeis de meio ambiente. Se por ventura o Estado mexicano resolver penalizar uma corporação por maus tratos ao trabalhador ou ao meio-ambiente, será chantageado pelas grandes empresas que ameaçarão sair do país, ou será vítima de um processo milionário no qual a corporação poderá acusa-lo de impedir sua obtenção de lucro, sendo endossada pelo Capítulo 11 do NAFTA, que permite às corporações processarem os Estados, caso achem que estejam perdendo seus lucros ou tendo a possibilidade de perde-los no futuro.

MÉXICO

Salários:

Muitos liberais defendem que o aumento na produtividade é a chave para o aumento de salário. No México essa não foi a lógica, pois embora o aumento na produtividade tenha sido de quase 48% no período de 1993 a 2001, isso não significou aumento de salários ao trabalhador mexicano.

Apesar do aumento de investimento estrangeiro, poucos foram os trabalhadores que viram algum tipo de benefício. Depois da assinatura do NAFTA, o valor do salário mínimo no México caiu aproximadamente 18% e os salários do setor de manufaturas caíram aproximadamente 21% [3]. Outro importante fato é que os trabalhadores que tentaram reivindicar aumentos salariais ou organizar sindicatos mais combativos, sofreram grande pressão por parte das empresas. O NAFTA nesse sentido mostrou ser um fraco mecanismo de melhorar as condições trabalhistas.

Vemos constantemente uma outra justificativa dizendo que o NAFTA foi bom ao México pois aumentou o valor do salário dos mexicanos. Levando em conta que o aumento do salário é sempre calculado com base na inflação, o salário caiu. Apesar do valor recebido pelos mexicanos ter aumentado 136%, a inflação foi bem mais alta. A cesta básica de alimentos, por exemplo, subiu 560% no mesmo período. Desde o início do acordo, o salário mexicano de forma geral, caiu pela metade perdendo 48% de seu poder de compra.

Com o NAFTA, o número de mexicanos vivendo na pobreza cresceu de 50,97% da população em 1994 para 58,40% em 1998 [4]. No mesmo ano de 1998, a participação no capital nacional dos 10% mais ricos da população avançou e a dos 20% mais pobres, foi a mais baixa dos últimos 20 anos.

Os trabalhadores mexicanos, na sua grande maioria não especializados, ficaram sujeitos a baixos salários. Aqueles com maior preparo, que tinham um alto nível de especialização, na maioria dos casos foram contratados pelas grandes empresas e alguns inclusive tiveram a oportunidade de trabalhar em outro país. À maioria dos trabalhadores, restou ficar no país e sofrer as drásticas conseqüências.

Empregos:

Desde o início do NAFTA, o número de mexicanos empregados em fábricas que produzem bens de exportação, mais do que dobrou. No entanto os empregos continuam aumentando somente nas cidades de fronteira e as maquiladoras estão se espalhando por todo o país.

O trabalho informal é responsável por 50% dos empregos no México, por isso metade dos empregados do país vive com baixos salários, sem boas condições de trabalho, sem direito à sindicalização, sem aposentadoria, sem férias e sem direito à licença por doença, maternidade ou paternidade. Um quinto da população mexicana tem péssimas condições de trabalho.

As condições de trabalho estão cada vez piores com o aumento da economia informal. Como os trabalhadores não têm vínculos empregatícios, ficam sujeitos às condições precárias de salário, higiene, segurança e às práticas discriminatórias. As grávidas que não conseguem trabalhar ou perdem seus empregos por razão de sua gravidez e os avisos de produtos químicos que sempre estão em inglês, fazendo com que os trabalhadores não entendam o que está escrito e muitas vezes entrem em contato com substâncias tóxicas nas fábricas; são exemplos da constante discriminação e do descaso que acontecem nesse mercado informal de trabalho mexicano, alimentado pelas grandes empresas geralmente vindas dos EUA ou do Canadá.

Exportações:

O aumento de exportações mexicanas feitas aos EUA foi de U$ 49,4 bilhões em 1994 para U$ 135,9 bilhões em 2000 [5], ou seja, as exportações mexicanas quase triplicaram nesse período. Esse dado pode nos levar a crer que com o aumento das exportações, automaticamente teríamos uma receita maior para o país exportador e que com isso ganhariam todos os cidadãos mexicanos. Infelizmente não é isso que acontece. Quem são os responsáveis por essas exportações? As empresas exportadoras são mexicanas? Depois desse aumento nas exportações, como ficaram as importações?

As exportações mexicanas são feitas por cerca de 300 empresas, na sua grande maioria, filiais de empresas dos EUA. Outro fato importante é que 96% das exportações do México são feitas pelas maquiladoras e essas 300 empresas. Os 4% restantes, são exportações feitas por quase dois milhões de pequenas fábricas, que sobrevivem duramente dentro do mercado e ainda não foram “absorvidas” pelas empresas norte americanas.

Um exemplo que podemos citar é a indústria têxtil mexicana, que teve um grande aumento nas exportações, mas aproximadamente 70% das empresas nesse setor são dos EUA, e que se instalaram no mercado às custas da expulsão das empresas mexicanas do setor. Outro dado relevante é que em cada dólar de exportação industrial do México para os EUA, existem somente 18% de componentes nacionais. Com relação às maquiladoras, em cada dólar exportado, somente 2% são de componentes nacionais.

Houve um aumento no fluxo de capital externo para o país que chegou a U$ 36 bilhões entre 1998 e 2000. Entre esses mesmos anos, o déficit em conta corrente, ou seja, os juros e lucros remetidos ao exterior ¬ principalmente aos EUA ¬ somaram U$ 48 bilhões [6]. Um claro exemplo mostra o aumento das importações de produtos americanos feitas pelo México na área agrícola. Os altos subsídios aliados com a tecnologia de ponta dos EUA, fizeram com que os produtos agrícolas americanos invadissem o mercado mexicano, mesmo havendo grande potencial de desenvolvimento agrícola no México. O México que antes exportava arroz e batata para os EUA, agora importa esses mesmos produtos em larga escala, ou seja, muitos bens internos que eram exportados, acabaram perdendo mercado para os bens altamente subsidiados norte americanos e começaram a ser importados.

Meio Ambiente:

Um estudo da Tufts University revelou que a poluição do ar no México praticamente dobrou depois do início do NAFTA. A fiscalização que existia sobre as empresas no período de assinatura do acordo, simplesmente acabou quando o acordo entrou em vigor. Um grande número de indústrias que transferiu sua produção para o México, passou a emitir poluentes num altíssimo nível e não houve nem sinal de fiscalização por parte do governo mexicano.

Outro fator que aumentou muito o nível de poluentes no território mexicano foi o aumento de transporte por via rodoviária. Fontes americanas assinalam que com o início do NAFTA, o tráfego por meio de carretas aumentou 150% e hoje cruzam a fronteira do México com os EUA em torno de 4 milhões de caminhões por dia. Com esse grande aumento, o ambiente recebeu em muito maior escala poluentes no ar, na água, na terra, e índices muito maiores do que o permitido de monóxido de carbono (CO), óxidos de nitrogênio (Nox), dióxido de enxôfre (SO2), ozônio (O3) e compostos orgânicos voláteis (COV) entre outros emitidos por veículos velhos e mal cuidados [7]. Além dessas emissões de poluentes, o ruído causado nos locais de transporte aumentou muito.

A Agencia Ambiental dos Estados Unidos - Environmental Protection Agency [8], assinala que:

“As emissões e o grande congestionamento de veículos nas pontes internacionais são a maior fonte de contaminação atmosférica nas cidades fronteiriças. As emissões de fontes industriais, de combustíveis residenciais e as partículas de estradas de terra, são também contribuintes significativos para a má qualidade do ar”.

Nos primeiros quatro anos do NAFTA, mais de dez empresas dos EUA que trabalham com a produção em madeira, iniciaram as operações no México, e grande parte de seu investimento foi feito em áreas onde restavam florestas virgens e intactas.

ESTADOS UNIDOS

Empregos:

O número exato de trabalhadores americanos atingidos pelos efeitos do NAFTA é difícil de calcular, mas sabemos que por volta de 356 mil americanos se inscreveram num programa de re-treinamento para pessoas que perderam seus empregos por razão da mudança de suas empresas para o México ou Canadá. As comunidades das cidades fronteiriças norte americanas foram fortemente atingidas pois milhares de empregos foram para o “lado” mexicano.

Para as corporações transnacionais, os benefícios pela substituição da mão de obra são muitos. Já em 1994 as empresas apontavam economias em torno de U$ 16 bilhões por razão dessa substituição. Para os trabalhadores dos EUA no entanto, restou o desemprego, a queda nos salários e a piora nas condições de trabalho. Alguns cálculos apontam para uma perda de 766 mil empregos nos EUA entre 1994 e 2000. Quem perdeu os empregos foram principalmente trabalhadores do setor de manufaturas que recebiam altos salários.

As empresas se mudaram para o México para se beneficiar dos baixos salários ¬ menos de U$ 5,00 por dia ¬ e os assalariados que ficaram no país, tiveram piores condições para o trabalho nas empresas e indústrias. Um claro exemplo de piora nas condições de trabalho foi o aumento das horas trabalhadas. Hoje nos EUA, trabalha-se em média 44,5 horas por semana, quatro horas e meia a mais que a “semana inglesa”.

Em Novembro de 1993, a Associação Nacional de Manufaturas (National Association of Manufactures ¬ NAM) emitiu um documento chamado “NAFTA, nós precisamos dele”, uma serie de declarações de mais de 250 empresas descrevendo como elas criariam empregos nos EUA e como iriam “alavancar” os negócios do país, caso o congresso aprovasse o NAFTA.

Três anos depois do acordo ter entrado em vigor, o Public Citizen [9], uma organização autônoma, sem fins lucrativos que, entre outras tarefas, luta por justiça econômica e social nas práticas de comércio nos EUA, examinou as propostas que haviam sido feitas e fez um documento relatando os resultados.

No documento consta que o NAFTA, além de não ter criado empregos, estava fazendo com que eles desaparecessem. Em três anos, o NAFTA já tinha “desaparecido” com quase 600 mil empregos, segundo o relatório. Esse documento, mostra ainda que a grande maioria das promessas das empresas para a criação de empregos nos EUA, não foi real e nem tem a possibilidade de ser no futuro. Três anos depois do início do NAFTA, 90% das promessas dos defensores do livre comercio para aumentar o número de empregos nos EUA ¬ 46 de 51 ¬ não foram cumpridas; 87% das promessas de aumento das exportações americanas ¬ 14 de 16 ¬ também não foram cumpridas.

Em 19 de Fevereiro de 1997, o Depto. Americano do Trabalho, certificou que 109.384 trabalhadores tinham perdido seus empregos, com base nos dados do programa de re-treinamento do Depto. de Trabalho do NAFTA chamado NAFTA-TAA. Isso representa somente uma parcela dos desempregados dos EUA pois esse programa, o NAFTA TAA, está disponível somente para alguns trabalhadores de algumas indústrias apenas.

Um exemplo claro de desemprego por transferência da mão de obra, aconteceu na empresa de jeans Guess Inc., que diminuiu a porcentagem das roupas que eram costuradas nos EUA. Antes do NAFTA, os EUA eram responsáveis por 97% das costuras e em Fevereiro de 1997, somente 35%. A Guess transferiu grande parte de sua produção para cinco fábricas no México e para outras pequenas indústrias no Peru o no Chile. Mais de 1000 trabalhadores da Guess americana ficaram desempregados.

Algumas das promessas feitas por corporações que não foram cumpridas:

Empresa: Johnson & Johnson
Fabricante de produtos farmacêuticos
New Jersey

Promessa: Uma estimativa da criação de 800 novos empregos como um resultado do comércio com o México, caso o NAFTA fosse aprovado.

Realidade: O NAFTA-TAA certificou que a Johnson despediu 512 funcionários por razão do NAFTA. 400 de uma fábrica no Arkansas e 112 de uma fábrica no Texas por causa de uma transferência de produção para o México. Quando a empresa foi procurada para falar sobre o assunto, preferiu não se manifestar.

Empresa: Siemens
Fabricante de equipamentos eletro-eletrônicos
New York

Promessa: A Siemens disse acreditar que como o NAFTA iria remover algumas restrições para o acesso ao mercado do México, a demanda por equipamentos iria crescer e as maquiladoras iriam diminuir. O NAFTA, segundo eles, teria um impacto positivo.

Realidade: O NAFTA-TAA notificou que 304 trabalhadores foram demitidos por razão da transferência de produção para o México. Foram 274 trabalhadores de Arkansas e 30 do Texas. A Siemens também não se manifestou quando perguntada sobre o porquê disso ter acontecido.

Salários:

Os trabalhadores têm sofrido constantes ameaças das empresas, que usam como argumento a possibilidade de deixarem o país e transferirem as industrias para o México. Com esse mesmo argumento, as empresas têm combatido os sindicatos e impedido que eles exijam melhores salários ou qualquer elevação na qualidade de trabalho. Um estudo da Cornell University de mais de 600 campanhas organizadas por sindicatos, mostrou que em 62% dos casos, a direção das empresas venceu a disputa com os sindicatos pela ameaça de fechar ou mudar a fábrica de país. Houve, além disso, uma diminuição em torno de 23% nos salários dos trabalhadores dos EUA [10].

Outro fator importante foi o aumento nos gastos com o controle de imigração no país. As expectativas liberais, afirmavam que os acordos de livre comércio gerariam crescimento e desenvolvimento, por isso diminuiriam a entrada ilegal de estrangeiros no país. Não foi isso que aconteceu. Depois de sete anos do início do NAFTA, a entrada ilegal de estrangeiros no país aumentou. Enquanto os salários dos norte-americanos diminuíam, o país mais do que dobrava o valor investido em policiamento nas fronteiras. O livre fluxo de capital, dessa forma, certamente não pôde, e nem deveria poder, vir acompanhado do livre fluxo de mão de obra. Em 1993 os gastos com policiamento na fronteira foram de U$ 967 milhões e em 1999 foram para U$ 2,56 bilhões. Hoje existem mais de 9000 policiais controlando a fronteira dos EUA.

CANADÁ

Empregos:

O Canadá é um dos países mais ricos do mundo e está entre os países com mais alto índice de desenvolvimento humano (IDH) na ONU. De 1994 a 2001 o Canadá teve sua economia estagnada além de assistir sua degradação social e ambiental.

Desde 1988 o Canadá tem um acordo de livre comércio com os EUA, chamado FTA ¬ Free Trade Agreement. Entre 1989 e 1996, o setor de manufaturas teve um declínio de 13%. Por razão das pressões do FTA e do NAFTA, o Canadá reduziu seus programas sociais. Por exemplo: o ano depois que o FTA teve início, 75% dos desempregados canadenses estavam cobertos pelo seguro desemprego. Em 2000, apenas 36% estavam cobertos [11].

A maioria dos novos empregos canadenses foi criada na área de serviços. São empregos temporários ou que não são de período integral e normalmente sem sidicalização, ou seja, da mesma forma que ocorreu com os EUA, os trabalhadores estão impossibilitados de se organizar em sindicatos combativos para fazer reivindicações em grupo. As empresas também fizeram ameaças aos trabalhadores canadenses de se mudarem para o México, caso exigissem melhores salários ou condições de trabalho mais adequadas. Hoje, 45% da força de trabalho canadense está dentro do que se chama de trabalho “flexível”, ou seja, empregos com carga horária e vínculos empregatícios reduzidos.

Com a grande competitividade estimulada pela abertura de mercado, os trabalhadores agora têm que ter um grande “jogo de cintura”, e a empresa deve produzir mais com menos funcionários. Isso significa diretamente piores condições de trabalho e aumento de estresse do trabalhador canadense.

Salários:

Para o salário dos canadenses, o NAFTA também conferiu perdas. No meio do ano de 1999, 52% dos canadenses recebiam menos de U$ 15,00 por hora. Um salário que pode nos parecer alto mas mostra que houve queda no valor pago ao trabalhador. Com as ameaças sofridas pelas empresas o salário diminuiu e os trabalhadores foram forçados a aceitar uma redução considerável nos benefícios que recebiam.

Desde o início do NAFTA, 276 mil trabalhadores canadenses perderam seus empregos. A renda per capita no país corresponde hoje a menos de dois terços da renda nos EUA e alguns analistas prevêem ainda que até 2010, haverá uma redução de 50 % neste índice.

As populações das Américas estão profundamente ameaçadas com a possibilidade de implantação da ALCA. O livre comércio, da forma como está sendo proposto, concederá mais poder às corporações, principalmente as transnacionais, e nem as áreas anteriormente protegidas, como o ambiente, serviços, educação e saúde ficarão de fora. Os tratados de livre comércio, como já aconteceu outras vezes, concedem às grandes empresas a possibilidade de movimentação de capital de investimento para os locais que forem mais vantajosos e não possuem ressalvas para os indivíduos ou para o meio ambiente.

Observando os dados do NAFTA, podemos concluir que ele representou a assinatura de um tratado da hegemonia das empresas sobre os indivíduos e o meio ambiente. Nos países envolvidos no acordo, os salários e os empregos diminuíram, as condições de trabalho pioraram e o meio ambiente sofreu graves conseqüências. É muito fácil ver quem ganha com esse tipo de comércio. As industrias “crescem”, os trabalhadores se tornam cada vez mais produtivos e a geração de empregos, o que raramente acontece, é seguida de trabalho com piores condições. Quem lucrou com o NAFTA foram somente as empresas. Podemos perceber que o mercado, quando deixado às suas próprias dinâmicas, não gera justiça social ou sustentabilidade. Imaginar a ALCA como uma extensão do NAFTA é uma realidade. Já imaginou o que pode acontecer caso ela seja aceita?

Notas:

1. World Bank, Global Development Finance 2001.
2. US Census Bureau, U.S. Trade Balance with México.
3. 6th Report of the governmet of Ernesto Zedillo, 2000, cited in “NAFTA At
Seven”, Economic Policy Institute, April 2001.
4. Banco Mundial 21 de Maio de 2001.
5. U.S. Census Bureau, U.S. Trade Balance with Mexico
6. Osvaldo Martínez. “Posición de Cuba sobre el ALCA”. Cuba Siglo XXI.
7. Kevin Gallagher “Trade Liberalization and Industrial Pollution in Mexico:
Lessons for the FTAA.” The Environment and the FTAA: What Can we Learn from the NAFTA model? Dan Esty and Carolyne Deere, eds. (New Haven: Yale forthcoming 2001).
8. http://www.epa.gov
9. http://www.citizen.org
10. Public Citizen “O que é a ALCA e o Nafta para as Américas?”.
11. Canadian Centre for Policy Alternatives

Bibliografia

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http://www.ips-dc.org/downloads/NAFTA%20at%207.pdf

Altamiro Borges “A trágica experiência do NAFTA”
http://www.espacoacademico.com.br/13cborges.htm

Common Frontiers “Trade and Human Rights in the Americas”
http://www.web.net/comfront/freekit.htm

Max Altman “A NAFTA trouxe mais prejuízos que benefícios ao México”
http://www.obore.com/cgi-local/artigos.pl?mostrar&artigo_8

Public Citizen´s Global Trade Watch “NAFTA's Broken Promises: Failure to Create U.S. Jobs”
http://www.citizen.org/trade/nafta/jobs/articles.cfm?ID=1767

Maude Barlow “A Área de Livre Comércio das Américas e a a ameaça aos programas sociais, à sustentabilidade ambiental e à justiça social nas Américas”
http://www.midiaindependente.org/front.php3?article_id=584

Marisa Jacott “Transporte transfronterizo y TLCAN. Controversia comercial y impacto ambiental”
http://www.rmalc.org.mx/transporte/ambiente.htm

Alberto Arroyo “Reflections from México on the Myths os Free Trade”