segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Ricardo II

Mais do que um príncipe ou um rei da Inglaterra, Ricardo é a figura da sua própria biografia no traçado que Shakespeare lhe confere: o homem real e a ficção, os seus atos e os sentimentos, as palavras que dizem longos solilóquios e são poemas líricos inventados, o poder e declínio que representou, orgulho e vergonha, os amigos, os inimigos e traidores, quem o amou e teria dado a vida por si, a morte e o luto. Para além do silêncio da leitura a sós, para além dos palcos e plateias, da história datada dos acontecimentos que relata, Ricardo é a linguagem complexa de profundos sentidos de catarse e provocação, que nos envolvem e tocam em imagem que hoje reconhecemos - ou meramente pressentimos ...- do mundo e de todas as nossas histórias.
A TRAGÉDIA DA POLÍTICA EM RICARDO II
José Renato Ferraz da Silveira

Tempos sombrios
Vivemos tempos sombrios, tempos difíceis, tempo de tragédia, tempo de grandes mudanças, quando se entrelaçam destinos pessoais e históricos em registro extremo. É o retrato de tempos assim que é a matéria deste livro. Estão em jogo a tensão e a ruptura dramática entre orientações políticas básicas na passagem da era medieval para a moderna. E quando se fala aqui em dramático é também no sentido literal que se pensa: a tragédia como composição literária destinada à encenação. Isso, na sua expressão mais alta, a de Shakespeare, e numa peça na qual todas as reconfigurações impostas pela mudança de época se condensam, a tragédia de Ricardo II. Também não casual que se fale no livro das “forças imponderáveis do acaso” quando a referência é a uma época em que ruíam as defesas contra a dimensão da contingência nos assuntos humanos. Desde Aristóteles esta era reconhecida como intrínseca à política, mas, no momento da consolidação do poder monárquico no mundo cristão a ela se opôs a concepção da unção divina, imune às contingências terrenas, como fundamento do direito monárquico. Unção que se exprimia na ideia de que ao corpo profano do rei se junta seu corpo sagrado (a doutrina dos “dois corpos do rei”, à qual o autor deste livro recorre nas suas análises). É o período no qual vem a emergir aquilo que Maquiavel colocou no centro da concepção do exercício do poder político que marcaria a modernidade: a ação do homem de valor, de virtú, para dar conta da contingência e, no tempo devido, dobrar a seu favor a inconstância do acaso, da fortuna. Como se vê neste livro, ao tratar de Ricardo II Shakespeare mobiliza os grandes temas que dão unidade à sua dramaturgia política, centrada na figura trágica do homem que está no centro da ação e tem sua capacidade de fazer frente aos entrechoques de ambições e paixões continuamente posta à prova. Como sugere o autor, e busca demonstrar pela contextualização histórica da figura de Shakespeare, a qualidade primeira que ele vê no monarca consiste em ser capaz de manter sob controle as ambições e hostilidades daqueles que o cercam. Ser capaz de centralizar e concentrar na sua pessoa o poder, não mais por injunção divina e sim (e aqui cabe Maquiavel) por virtú. Unificar o mando, consolidar a nação; realizar, portanto, a grande tarefa histórica do momento, a da construção do Estado nacional. É esse tema, nas suas diversas dimensões e na transfiguração que lhe confere a grande obra de arte, que se encontrará reconstruída neste livro.

A peça

Ricardo II faz parte das chamadas peças históricas da Dramaturgia shakesperiana: a segunda tetralogia sobre a História da Inglaterra, em torno da figura de Henrique de Bolingbroke (Henrique IV, Partes 1 e 2), a qual também inclui Henrique V.
Para muitos críticos, a peça Ricardo II é a mais formal e cerimonial das peças shakesperianas, onde os conflitos de natureza política e bélica que geram a ação permanecem sempre nos bastidores das evocações, são cenas de violência, traição e vingança, de profunda carga emotiva, como a da célebre deposição do rei. Para os leitores e espectadores hoje em dia, a excentricidade em Ricardo II é a formalidade que tem um efeito maravilhoso e que provoca certo estranhamento.
Dotado de uma natureza lírica, esse drama histórico forma uma tríade, ao lado de Romeu e Julieta, uma tragédia lírica, e Sonho de uma Noite de Verão, a mais lírica das comédias shakesperianas. Embora seja a menos famosa das três e contenha altos e baixos, Ricardo II é uma peça esplêndida; trata-se do melhor drama histórico escrito por Shakespeare, excetuando-se as peças de Falstaff, isto é, as duas partes de Henrique IV (BLOOM, 1998, p. 317).
Ricardo II não é uma peça caracterizada pelo relato e pela representação dos fatos em si, mas pelo seu desdobramento em sequências de momentos, quase sempre de espera, em que a situação sobranceira autoconfiante do rei e de todos os que o acompanham, estejam do seu lado ou em oposição, se vai dissipando em presságios funestos até alçar a mais profunda trágica desesperança. As falas mais pungentes são proferidas pelo próprio protagonista Ricardo II. É interessante observar que na opinião do crítico Harold Bloom, Ricardo II não passa de um ensaio para a criação do personagem Hamlet.
Ricardo II não é uma das peças shakesperianas mais “conhecidas do público”. Uma breve retrospectiva pela sua recepção na Inglaterra dá conta de oscilações significativas na apreciação e avaliação que as diferentes épocas lhe atribuem. Junte-se a isso a reação política que despertou junto ao público elizabetano que lhe valera a reputação de peça subversiva e revolucionária.. De certa forma, mesmo após algum interesse crítico suscitado nos meios culturais augustanos, particularmente em Dryden e Samuel Johnson, a peça é relegada comumente para alguma penumbra da memória das plateias e dos críticos. Será no século XIX romântico, pela voz crítica de Coleridge e, algumas décadas mais tarde por Pater, Montague, Yeats e Swinburne, que a obra recupera enquanto retrato do homem na sua dimensão de masculinidade e não mais na simbologia política. O período entre as duas guerras mundiais fizeram de Ricardo II ser mais vista pelo público teatral na Europa ao apresentar a trágica condição humana do estadista.

A atualidade da peça

Vivemos uma crise generalizada que intima profundamente a dimensão cultural, artística, política, ecológica, espiritual e filosófica de nosso tempo, pois todas estão tocadas, no seu âmago, por um sentimento de desorientação e incerteza A angustiante insatisfação das populações com as democracias ocidentais tem sido parte da História. Elevam-se as vozes que interrogam as escolhas e decisões que determinaram a economia política das sociedades. Mas ao mesmo tempo, vemos sinais da criação de novas formas de viver e de pensar, inspirados na memória das lutas políticas e dos movimentos sociais.
A presente obra A tragédia da política em Ricardo II demonstra essa singularidade histórica do Ocidente (podemos pensar também em termos do Brasil do século XXI), entrelaçando experiências trágicas e esperanças messiânicas.
O último rei Plantageneta, Ricardo II, viveu entre uma fraca base de apoio e uma forte oposição armada contra seu governo. Perdeu a vida. Perdeu o poder. Eram outros tempos. Tempos do medievo. Na Inglaterra. O rei Ricardo II tentou-se manter através de um princípio de legalidade que estava cada vez mais sendo superado pela época da transição crítica. Ao leitor curioso, “Ele” acreditava ser o representante de Deus na Terra e governar sem oposição ou resistência. Ledo engano! A política é marcada por sua face conflituosa e paradoxal.
O que observamos é que cada vez mais as vivências políticas dos estadistas são teatralizadas, em que as “sombrias forças” do poder impactam principalmente neles. Parece que os deuses honram com sua vingança não aos homens comuns, mas aqueles que se situam acima da sua existência. É a sina e o destino trágico dos estadistas.