segunda-feira, 11 de abril de 2011

DEU TOURO, OU COBRA?

Minha esposa tinha o costume de jogar no bicho. Todas as manhãs, ela me especulava se eu sonhara com algum bom palpite.
Entretanto, numa noite eu tive um sonho bem diferente, no qual, ela revelou-me um fato sinistro:
- Jobert, você se lembra do Clemente, aquele senhor calvo, que era seu colega na repartição.
- Sim. Lembro-me muito bem, sempre eu o reencontro por aí. Ele ainda trabalha lá. - Respondi-lhe no diálogo do meu sonho.
- Eu soube que ele surpreendeu a jovem esposa com um amante e deu dois tiros na cabeça do conquistador barato.
Após aquele marasmo eu acordei muito agitado. Dava a sensação que era tudo verdade. Demorei certificar-me de que era simplesmente um pesadelo. Por outro lado, eu me questionava como minha senhora entrara no meu sono para dar-me aquela inoportuna notícia.
Entretanto, não levei muito a sério a premonição. Era um sábado e eu fui, logo de manhã, a uma livraria do centro. Queria conferir alguns lançamentos.
Enquanto observava um livro que veio a calhar. Seu título, “Pense na frente do seu rival”. Curiosa coincidência, surgiu no momento apropriado.
Com um sorriso zombeteiro, alguém colocou uma das mãos delicadamente em meu ombro? Enquanto me dirigia sua saudação:
- Então, seu Jobert, o senhor continua gozando sua merecida aposentadoria?Tudo bem?
Eu tive um violento sobressalto, uma vez que reconheci a sua voz. Em seguida, tentando disfarçar minha surpresa, respondi-lhe de modo alegre e cortês:
- Que prazer reencontrá-lo, meu antigo companheiro de batalhas. Desculpe-me, pela voz, eu julguei que fosse um velho senhor, lá da minha terra, que há muito não vejo.
- Eu não sabia que, às vezes, o senhor é também aprendiz de detetive. Perguntou-me com alguma malícia.
Eu não entendi de onde ele tirou aquela dedução. Eu ainda desconhecia o livro. Será que tratava desse assunto? Fui obrigado improvisar uma resposta:
- Sabe que gosto de escrever e simplesmente buscava uma nova inspiração.
Porém, não resisti à tentação e dirigi-lhe uma pergunta:
- Então, como vai sua jovem esposa, sempre bem disposta e alegre?
- Continua até mais jovem e feliz, para ela o tempo não passa, nem se desgasta com os vários problemas que enfrentamos no dia a dia. Nós marcamos encontro aqui, ela está demorando, já dei voltas no quarteirão... E continuou um tanto pensativo: - Depois ela precisa passar no supermercado, enquanto eu irei comprar uns acessórios...
Em seguida, meu antigo colega afastou-se para outra estante. Eu continuei minhas buscas, porém, com o rabo dos olhos procurava não perdê-lo de vista.
Ele não demonstrara nenhum tipo de aborrecimento ou contrariedade. Embora o sonho não tenha, comprovadamente, algum significado, aquilo me intrigava.
Num momento de desatenção, ele escapou da minha vista, quando o procurei, a esposa já havia chegado. Parece que foi um reencontro um tanto frio.
Procurei aproximar-se um pouco mais. Captei uma conversa sobre equipar o carro dela com o acessório já comentado.
Em todos os gestos do casal eu procurava usufruir do meu suposto segredo já conhecido.
Se a premonição estava correta, eles eram bons atores e não deixavam transparecer que havia um clima para uma atitude mais radical. De qualquer maneira, eles permaneciam distante um do outro. Não existia aquela aproximação de casal apaixonado.
De fato, deu para notar que a jovem senhora apresentava-se melhor conservada. O maridão estava grisalho, já perdera muitos fios de cabelos e tinha uma pança de sete leitões.
Enquanto aguardava o desenrolar dos acontecimentos, eu desfrutava de uma sensação de ser um sábio profeta, com uma angústia suprema e com uma séria preocupação. Era como eu já soubesse o resultado do jogo do bicho na véspera do sorteio.
Ainda mais, quando eles conversaram sobre algo. Notei que houve uma transfiguração nas faces do casal. Eu percebi algum contratempo, ou uma surpresa qualquer. Havia uma interrogação, pela fala mais ríspida ou mais pesada.
Como bom observador, cheio de malicia, eu pensava com meus cabelos: “Por que ela demorou tanto? Sua consciência pesa quantas arrobas?O que ele planeja?”
Finalmente, o distinto casal partiu, enquanto eu permaneci mais alguns minutos, muito pensativo, naquele recinto.
No domingo cedo, eu até já esquecera aquele episódio, no entanto, abri o jornal e, estampado na primeira página: “Jovem empresário é encontrado morto nas margens da vicinal, bem próximo do motel estrela”.
Atônito, quase caí duro. Ainda assim eu me perguntei: - E agora? Que bicho dará?
Eu conhecia superficialmente o empresário citado, todavia ignorava sua fama de paquerador.



























ERAM DOIS GRANDES SONHOS

Luciano Fernando era um pobre órfão de vinte e dois anos. Não era tão inteligente, mal terminara o curso básico até a oitava série. Isto até justifica, visto que precisou trabalhar para ajudar os pais. Por ser uma criança levada, seu pai o chamava pela combinação das quatro e três primeiras letras do seu nome: Lúcifer.
Havia também feito alguns cursos técnicos, mas isto não lhe assegurou emprego. Um dos seus grandes sonhos era trabalhar numa fábrica de médio porte que há um bom tempo instalara na cidade. Na verdade, quase todos os moradores da cidade tinham essa pretensão.
No momento trabalhava de caseiro na casa de campo de um ricaço da capital. Mostrara boas qualidades. Cuidava bem da casa, do jardim, da piscina, dos carros e dos cachorros. Ficava vinte e quatro horas disponível. Quando o patrão aparecia por lá, não faltava cerveja e sabia também fazer um bom churrasco.
Estava apaixonado pela garota Heleny, às vezes desligava-se do mundo, ficava extático, absorto com aquela linda formosura, de vez em quando deixava seus afazeres para vê-la, numa escapadinha até a cidade, nem que fosse só para olhá-la passar como uma ave colorida, batendo as asas. Isto já o prejudicara uma vez.
Estava arrebatado com seus pensamentos. Aquela mulher fazia-o perder o juízo. Quando uns garotões da cidade tentaram pular o muro para nadar na piscina. Luciano apareceu no momento correto. Os folgados, ao perceberem o desagradável flagrante, quiseram negociar uma autorização para nadar, todavia foi negada pelo caseiro.
Luciano pediu com muito jeito:
- Por favor, retirem-se. Caso contrário, eu soltarei os cachorros ou então chamarei a policia. Qual vocês escolhem?
Os jovens não gostaram do tom irônico e das propostas. Uma vez que ambas eram severas e punitivas.
Foram embora, mas arrumara antipatia com o grupo. Eles pretendiam descobrir o seu ponto fraco.
Sobre o caso com a garota, decidiu procurar uma mandingueira. Foi instruído fazer alguns trabalhos, porém no final, deveria entregar a alma ao diabo, o qual, numa próxima sexta feira, viria negociar encarnado em um homem normal, todavia deveria ser identificado pelo cheiro do enxofre.
Fernando era mesmo apaixonado e um homem assim, às vezes, pode perder a razão e os bons princípios.
Com referência ao emprego, seu patrão o queria bem, quando soube do seu grande desejo de trabalhar na fábrica, não se opôs, e até usou de sua influência para apresentá-lo como candidato a uma vaga como guarda ou vigilante.
Deu tudo certo, pois Luciano era sozinho, solteiro, não escolheria horário. Era desse elemento que a firma precisava e tinha boas referências como caseiro.
O fato de ter-se saído bem na seleção para os serviços da fábrica deixou alguns concorrentes, moradores de uma cidade vizinha, muito enciumados. Pois havia, pelo menos, cinqüenta candidatos para duas vagas.
Luciano começou trabalhar imediatamente, fez curso de vigilante, especializou em usar armas em legítima defesa. Iniciou os trabalhos no turno da noite, quando a fábrica ficava parada.
Agora, estava entusiasmado com Heleny. Como a metade de seu sonho já realizara. A outra já deslumbrava no horizonte. Havia possibilidade de conquistar o coração de sua amada. Ela até tornara sua amiga, a tarefa já não parecia impossível.
Entretanto, Heleny era uma bela jovem, morena, bem torneada e de negros cabelos caídos sobre os ombros. Tinha excelente educação, boa formação, era de boa família. Eles até tinham alguma posse. Heleny sabia desses seus predicados. Portanto, ela era um delicioso filé mignon feito com muito esmero. Não era para o marmitex de um Luciano qualquer.
Na sexta feira seguinte, por coincidência, treze, de madrugada, após uma ligação à portaria da fabrica para confirmar a presença de Luciano naquele turno. Dois monstros estranhos, diabólicos mesmos; um chamava a atenção pelos chifres, pelo rabo, pelo focinho de bode, por um roupão negro e peludo e por um enorme casco substituindo os sapatos. Seu seguidor parecia usar uma máscara de um animal estranho, ambos exalavam um cheiro danado de enxofre. Esses satânicos monstros surgiram de um matagal perto da firma, bem no momento em que um vigilante fazia uma espécie de ronda, contornando todas as ruas que circundavam a área da fábrica, em plena madrugada, numa área muito mal iluminada.
O mais curioso era que os diabólicos, mesmo com aquelas vestimentas estranhas de capetas, queriam apenas atrair sua atenção. Não planejavam espantar o guarda, tudo indicava que a intenção era mesmo chamá-lo para iniciar uma negociata.
Todavia os dois comparsas apareceram tão inesperadamente, barraram o caminho do guarda, tentaram comunicar-se para início do negócio, aí acabaram assustando-o. Decerto os dois sobrenaturais acreditavam que só um guarda trabalhava naquela noite.
O vigilante, no reflexo, julgou que realmente tratava-se de algo sobrenatural, após uma bambeada de pernas, recuperou-se e virou em disparada. Ao dobrar a primeira esquina deu de cara com outro capeta. Aí foi demais, o coração quase pula fora do peito, mas ainda conseguiu ficar em pé. Ao ver-se encurralado, teve lembrança, pelo que lera a respeito de demônios, de que não adiantava atirar contra, pois o Lúcifer era inatingível. Deu, então, um tiro para cima para chamar a atenção do companheiro que estava dentro da fábrica. Tentou esconder-se num pequeno bosque.
Porém, teve um pensamento positivo e tomou uma decisão:
- Eu não creio em capetas! Quanto mais aqui na terra, visitando a cidade de Prosperidade. Eu retornarei à rua! Disse com ares de super herói.
Que boa surpresa. Já não viu mais os dois capetas nas proximidades dos lugares onde eles estavam anteriormente, muito menos o perseguiram.
De um lado estava o seguidor ainda tentando levantar-se, pois no corre-corre, pisara na barra do roupão e capotara. A esta altura já devia estar todo lambuzado. Na confusão, havia vazado enxofre, o vento esparramara o pó pela rua. Um mau cheiro pairava na atmosférica.
Na outra travessa, já afastado, o segundo capeta ainda corria a fim de apanhar carona em um carro que manobrava. Um dos chifres havia se despregado e rolava asfalto abaixo.
O guarda deduziu que o mascarado assustou-se com o outro capeta, que saíra dos cafundós do inferno para castigá-lo, enquanto o outro demoníaco tivera o mesmo pensamento. Por isso, ambos correram sem olhar para traz, sem ao menos conferir se o seu oponente realmente era um demônio legítimo.
O guarda então teve certeza de que se tratava de alguns moleques brincalhões que tentaram pregar-lhe um susto e sentiu-se seguro de que já havia espantado os maus atores.
Portanto, regressou ao portão da guarita. Nesse instante, o colega saiu ao seu encontro. Ao sentir o cheiro do enxofre esparramado, o companheiro perguntou-lhe:
- Parece que o bom capeta quer falar comigo? Por acaso foi nele em que você tentou acertar?
- Sim, atirei, eram dois covardes e fugiram!
- Nossa! Então eram dois? A feiticeira era jóia mesmo!
O colega desconhecia a estória da mandinga, não entendeu nada.
- Puxa! Você foi espantá-los! Eles tinham negócios comigo! Insistiu o guarda Luciano.
Aí o colega ficou na dúvida e tentou argumentar que eram falsos capetas. Contou todos os detalhes dos encontros.
Entretanto, pensando melhor: “Por que eram falsos? O primeiro desaparecera em segundos? Somente ficara aquele pateta mondrongo que caíra? Hum! Ele devia ser seu interprete ou testemunha? O segundo deveria ser um capeta terrestre e fugira de carro? Eh, eles perceberam que foram atrás do guarda errado e decidiram voltar outro dia? Mas por que perdera o chifre?”
Enquanto o companheiro teimava que ele atrapalhara o seu encontro. Ou então, um falso capeta surgira para atrapalhar:
- Que azar danado! Era minha oportunidade!
- Bom, se eles eram falsos ou verdadeiros eu já nem sei. Agora, como eu usei uma bala, teremos que fazer relatório para o chefe da segurança.
Logo os dois estavam reunidos para bolar uma estratégica e rabiscar um relatório que justificasse o uso do revolver.
- E se outras pessoas ouviram o tiro? – Disse Luciano preocupado.
O outro respondeu:
- Como não chegamos a disparar o alarme e demos um único tiro, seria mais prudente relatar que um palhaço mascarado rondou a fábrica.
Prosseguindo o relatório: O vigilante deu de cara com ele e pediu documentação. Por que rondava a fábrica? Como ele não manifestara vontade identificar-se. O vigilante atirou para o ar a fim de intimidá-lo.
O palhaço, mal intencionado, fugiu e pegou carona em um carro. O guarda que estava dentro, o competente Luciano Fernando, percebeu os movimentos do carro, olhou pelas frestas da grade e anotou o número da placa.
Logo os dois imaginavam uma manchete no jornalzinho da cidade:
“Malandros Mal Sucedidos”.
E o texto:
Dois suspeitos, com vestes estranhas e assustadoras, com longos chifres, rondavam a fábrica, na madrugada de sexta feira, treze. Suas intenções não eram boas, segundo um dos vigilantes. Porém, o corajoso e destemido vigilante assustou-o, dando um tiro para o ar. Enquanto o outro determinado e eficiente vigilante anotou a placa, etc.
Todavia, de repente, numa recaída, Luciano lembrou-se de Heleny. Voltou a questionar alto, repreendendo o colega:
- Perdi a oportunidade de encontrar a fórmula mágica para conquistá-la!
O outro perguntou:
- Conquistar quem? Qual fórmula?
- Deixe para lá.“Não era mesmo o filé certo para a minha marmitinha”, pensou tristemente. E disse em tom agudo:
- Em compensação, agora eu conheci Angélica, um anjo, uma nova luz na minha solitária existência!
“Vamos deixar essa estória de fazer acordo com o feiticismo e cair na real, ou em outro caso, posso até perder o emprego. Esta vez foi por pouco.” Até sorriu com uma ponta de consolo.
Em seguida, relembrou: “Na vida, às vezes, igualmente, temos que aceitar a derrota, a renúncia, o conformismo, a realidade, a solidão e o recomeço. Devemos constantemente lembrar que no fim do túnel não existe somente uma porta fechada. Deve haver também janelas e outra porta abrirá para você, uma nova, florida e perfumada primavera sorrirá ao amanhecer.” Recordou esta frase que lera em algum lugar.
Mesmo assim, ainda pensou consigo mesmo: “Será que era mesmo ele...”

A sede de poder

A sede de poder

A peça Ricardo III escrita por William Shakespeare entre 1592 e 1593, integra a tetralogia da Guerra das Duas Rosas, drama histórico que goza de enorme popularidade e prestígio pelo vigor poético e temática envolvente. Trata-se de um dos textos mais encenados de Shakespeare.
Tanto o teatro como a política são espaços nos quais somos levados a participar. Ambos exigem engajamento, envolvimento, unidade entre representantes e representados, cumplicidade entre ator (político) e público (cidadãos). William Shakespeare nos revela, através da presente obra, o diálogo entre a política e arte e, consegue manter, evidentemente, a atualidade da peça para os nossos dias.
Vivemos uma época em que as práticas e o discurso político são associados à mentira, a farsa, ao engodo de maneira descarada. A ética do indivíduo concebida e desenvolvida no Renascimento se hipertrofiou na contemporaneidade. Notam-se as conseqüências desse ultra-individualismo nas inúmeras doenças culturais que se manifestam na sociedade brasileira: cultura da esperteza, da transferência de responsabilidade, do imediatismo e do superficialismo, do negativismo e da baixa auto-estima, da vergonha da cidadania e patriotismo, do rir da própria desgraça, do desperdício, do consumismo, do tecnicismo, do corporativismo, da politicagem, do fisiologismo e do nepotismo e, por último, a cultura do conformismo. Tais comportamentos viciosos proliferam-se na esfera dos três poderes do Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário – como se observa nos sucessivos escândalos que marcam os noticiários políticos dos últimos anos.
Sabe-se que o poder político permeia as relações humanas e sociais de forma intensa e, por vezes, devastadora. Na visão de Jean-Marie Domenach, todos somos, ao mesmo tempo, vítimas e culpados, ao estarmos imersos no mundo da política; não há saídas, nem lugares para fugir, as forças políticas opostas se confrontam e se justificam num estado de contradição impactando na sociedade.
Inúmeros pensadores, tais como: Maquiavel, Locke, Foucault, Bertrand Russel ocuparam-se em discutir as práticas coletivas dos meandros do poder e das ações sociais. Shakespeare vai além. Em Ricardo III, o poder político se apresenta sem disfarces. O bardo inglês realiza a teatralização da política expressando as tensões e paradoxos que atravessam a esfera do poder: o potencial com que a Política pode contribuir ou impedir a melhoria da condição humana. Nesse sentido, a política para Shakespeare é uma atividade tipicamente humana caracterizada pelo binômio: motivação pelo poder e a inevitabilidade do conflito. Surge daí, uma das novidades da nova perspectiva de compreensão da política, ou seja, o reconhecimento da permanência do conflito. Caracterizar, portanto, a política moderna ou contemporânea é entendê-la como jogo de forças opostas resultantes dos inconciliáveis desejos humanos. Tal "choque de interesses" evidencia o caráter trágico do jogo político: conquista, manutenção e perda do poder.
A tragédia do rei Ricardo III trata da permanente disputa do poder a qualquer preço e a falta de escrúpulos para a conquista e manutenção dele. Nela, o protagonista é um sujeito manco e corcunda, cuja aparência disforme, segundo o próprio, o impede de usufruir dos prazeres da conquista amorosa, mas não alçar vôos mais altos. No solilóquio inicial ele planeja como chegar ao poder mesmo sendo o sétimo na linha sucessória. Para alcançar seu objetivo, se utiliza de expedientes vis: conspira, manipula, explora, agrega apoios, promove alianças por conveniências momentâneas, articula adesões e coalizões, persegue e condena à morte os opositores. Movido pela sede de poder Ricardo III articula-se nas sombras, ao longo dos atos e cenas, até alcançar o triunfo almejado: o trono inglês. Para se livrar de quaisquer suspeitas de seu envolvimento nas tramas e urdiduras palacianas ele faz uso de subterfúgios conhecidíssimos: esconde-se sob o manto da religiosidade, sobriedade, humildade e outros artifícios de valores éticos e morais.
Assim o escritor inglês nos ensina, entretém e diverte. Através da arte teatral fornece elementos constitutivos do homem contemporâneo e suas relações. Essas movidas, muitas vezes, por uma ética individual refletida no uso indiscriminado de inúmeras máscaras como no jogo teatral; múltiplos disfarces agindo conforme interesses ou determinadas circunstâncias. Temos, então, o religioso, o ateu, o humilde, o simples, o culto, o ignorante, o moralista, o liberal, o caipira, o urbano, o ético, o ideológico, o pragmático, o vilão, o herói, o solidário, o benemérito, o sensível, o delicado, o paz e amor, etc. Todos, devidamente, direcionados ao público alvo a ser atingido.
Na tragédia política Ricardo III captamos essa ética sendo forjada e desenvolvida. Shakespeare nos revela essa “ética” como um instrumento de poder e nos proporciona ironicamente mergulhar em nossas consciências individuais e notar em nosso interior a presença da sede de poder: o complexo Ricardo III. O teatro moderno representado nas peças de Shakespeare, bem como o exercício da política na contemporaneidade concebe os homens como sujeitos da história impulsionados à participação - uma das exigências da democracia - não se admite o desinteresse, a passividade e fundamentalmente a despolitização. No palco da política sejamos atores e não espectadores, público da tragédia política.

José Renato Ferraz da Silveira é professor de Relações Internacionais da UFSM.

Por dentro da tragédia

Por dentro da tragédia

Ruy Castro

Esta semana, assisti com grande atraso ao documentário “102 minutos que abalaram o mundo”, do History Channel. Trata do atentado ao World Trade Center, em Nova York, a 11 de setembro de 2001, e foi feito a partir dos sons e imagens captados por celulares e câmeras de populares na área da tragédia – apavorantemente ao vivo. Leva-nos para o centro dela, como nunca antes.
Fez-me rever meus conceitos sobre o século XX como o mais documentado da história. Até eu então me regozijava por viver numa época em que quase tudo que aconteceu desde 1900 teve alguma espécie de registro, em foto, filme, disco, desenho, vídeo etc. A frase continua valendo, mas quanto disso sobreviveu e chegou até nós?
Oitenta por cento dos filmes mudos, pré 1929, se perderam – até mesmo nos EUA, incluindo alguns de Greta Garbo -, assim como 99% do material filmado para cinejornais. No Brasil, essa perda se estendeu por décadas. Dos seis filmes que Carmen Miranda rodou aqui nos anos 30, só restou: “Alô, Alô, Carnaval!”. Que imagens de Garrincha você conhece, exceto duas ou três, manjadas, de 1962? E, ao ver hoje cenas das passeatas de 1968, tem-se a impressão de que, juntamente com os estudantes, elas também foram pisoteadas pelos cavaleiros da PM na Porta da Candelária.
Já o que está sendo registrado em nosso tempo periga durar para sempre, não pela indestrutibilidade das mídias, mas pela quantidade de registros. Todo mundo está agora acoplado a uma câmara. O 11/09 foi há nove anos, quando o número de filmadoras em celular era ínfimo se comparado ao atual. Mesmo assim, o History Channel produziu quase duas horas de horrível emoção sem recorrer ao material das grandes redes de TV,
Pelo visto, o que ainda vem por aí em matéria de registro e documentação ameaça despachar o século XX para o século XIII.

Cálice da Loucura

Cálice da Loucura

O vinho, néctar do amor.
Do puro amor, a arte da embriaguez,
O ato de esquecer a dor.
Banho-me na púrpura luz dotada de altivez.

Manifesta-se no glamoroso corpo,
Aos meus olhos, a beleza infinita que nunca perecerá.
Como um cálice consagrado unifica corpo-a-corpo.
Minha alma inquieta jamais a esquecerá.

Arrasto-me em dissoluta saciedade,
Em Baco repousa o meu espírito revoltado,
Arrebatado em profunda e delirante impiedade,
Deixo-me afogar no mar agitado.

Entre a escuridão e as trevas, aqui estou,
Perdendo na doce lágrima vermelha o sal da vida.


José Renato Ferraz da Silveira
Por que a China cresceu tanto e o Brasil deu marcha a ré? Com a détente e a diplomacia de aproximação entre Washington e Pequim, onde a estratégia americana combinou coerentemente o pacto regional e a política mundial dos Estados Unidos, o que se vê é uma onda de crescimento extraordinário. Existem outros fatores empurrando esse desenvolvimento, mas uma coisa é certa: é a visão das autoridades chinesas, embora o país não seja ainda uma democracia. A América do Sul sempre se caracterizou pela instabilidade de suas estruturas políticas. A inexistência de instituições democráticas tradicionais condicionou a sucessão de regimes ditatoriais implantados na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, diga-se a bem da verdade, com a benção dos americanos. O Brasil pós-regime militar manteve as mesmas linhas mestras, inclusive na segurança nacional. Os transtornos ocorridos com os pescadores e turistas nas praias do Guarujá com a presença do presidente da república é a prova disso. Não vou discutir a questão, quero falar do autor da frase usada no título. Acredito que o fato de Mário de Andrade ser poeta fez dele um vidente, pois as saúvas, do primeiro ao décimo escalão, continuam atacando nosso doce erário. Da saúde é bom nem falar, além dos nossos governantes não primarem por saúde mental, são cegos como toupeiras. Aqui político não ouve, não vê... eles só não são mudos. Uma pena, pois poupariam nossos ouvidos de muita bobagem. O Brasil não desenvolve, o desemprego crônico está colocando uma parcela dos brasileiros na marginalidade. Não se percebe no atual governo um esforço maior para convencer os parlamentares a votarem as reformas necessárias ao tão sonhado desenvolvimento. No período de 1996 a 2005, a economia mundial cresceu 4% ao ano, no Brasil 2%. Na mesma época, os países emergentes investiram cerca de 30% do PIB em atividades produtivas, o Brasil 18%. O investimento público de 4% em 1970 caiu para 0,5% em 2005. A carga tributária dobrou e a renda nacional continua concentrando. Com isso a classe média, penalizada com tributos que oneram de quatro a cinco salários/ano de seus rendimentos está desaparecendo. Quero ver de onde vão tirar o sustento de Macunaíma e seu povo heróico, sem ela. Para crescer 3,5% ao ano, os investimentos em energia elétrica, petróleo, gás, telecomunicações e transporte teriam que ser – pasmem – de US$ 27 bilhões ao ano! São dólares e não reais... pois só as estradas de rodagem precisam de R$ 33 bilhões para continuarem existindo, isso é duplamente real.

Somando-se os dados acima, mais o panorama de descrédito total com a política e os 16 milhões de analfabetos, o país vai levar mais de cem anos para começar a se desenvolver, enquanto o mundo deverá dobrar a renda per capita em 30 anos. Sem crescer não há saída, esse é o mote. A pergunta é: como crescer num país onde enormes quantidades de recursos públicos são carreadas para a vida privada?


A autora, Janira Fainer Bastos.

UM ENCONTRO INTERESSANTE

UM ENCONTRO INTERESSANTE

O tempo estava seco e quente. O forte sol escaldador era um convite para estar em contato com a água: numa piscina, no mar ou num rio. Eu passava alguns dias no sítio de minha irmã, resolvi caminhar por dentro de um riacho ou simplesmente beirar-lhe, conforme a acessibilidade. Nos trechos de areia, onde era raso, eu andava por dentro d’água, já nos trechos empoçados, margeava. Aproveitava para admirar as árvores, os pássaros, os peixes. Fui caminhando sem pressa, sem destino certo, até onde houvesse córrego, ou cansasse. Assim, sem perceber, fui parar num sítio de um vizinho que ficava há quatro quilômetros da casa de minha irmã.
Estava lá descansando um pouco, à sombra de uma árvore centenária, chamada de fruta cavalo, quando surgiu de repente um velho. Ele estava montado num corcel negro. Usava um traje antigo, terno escuro, chapéu, camisa amarela e sapato preto.
O fato curioso era que estava montado em pelo, somente com uma corda escura, sem ao menos um cabresto.
Logo o reconheci. Esse ancião foi companheiro de mocidade do meu pai. Casara-se com uma das filhas dos portugueses que tinham um sítio vizinho ao do meu avô. Porém, não o via há muito tempo. Mais ou menos uns dez anos.
Entretanto, não estranhei, eu estava caminhando em sua propriedade, fiquei até feliz em reencontrá-lo depois de muito tempo, Também ia distrair-me batendo um papo.
O velho, Somindo Berti, como era chamado, já veio falando de longe:
- Que prazer encontrar o filho de meu grande amigo Levi Vando!
- Também o meu! Quanto tempo, hem!
Na verdade não gostei muito dele lembrar o apelido do meu pai do tempo do exército. Meu pai chamava-se Elvis Elvando, um nome até clássico, mas era chamado de Levi Vando ou Levitando, por ser magro. Entretanto senti um calafrio, pois, levitando, parecia o seu Somindo, montado naquele cavalo.
- Acredito que você pode ser a pessoa certa de que estou precisando.
Após os cumprimentos, começamos falar sobre as famílias, logo ele contou dos filhos, da herança do sítio, que ia deixar para os quatro filhos. Disse-me ainda que recebia uma aposentadoria, pequena, mas ajudava; tinha um dinheirinho a juro, uma casinha de aluguel na cidade e outra para morar com a velha Maria Eugênia. Portanto, estava muito bom.
Contou-me que vendera o gado para doar o sítio aos filhos, pois não tinha mais disposição para negócios. Porém seu sonho era que os filhos, bem melhores preparados que ele, donos de algum capital, formassem uma sociedade para criar gado de raça, nelore, por exemplo. Daria pouco trabalho e lucro na certa. Além de transmitir uma boa imagem da propriedade.
- Eu demorei em juntar as terras! Não quero que elas sejam esfaceladas, repartidas de novo! Elas devem permanecer como estão! Disse o velho, gesticulando os braços: - Mas as coisas estão difíceis, a filha quer vender para comprar uma mansão, outro quer montar um grande escritório de Advocacia, outra filha falou em comprar um carrão importado. Apenas um quer sacrificar-se para continuar com o sítio. Mantê-lo intocável, do mesmo tamanho, sem vender um alqueire sequer. Também, o Jacinto tem dinheiro! Na verdade, todos estão bem de vida, não precisam desse dinheiro.
Essa família era uma mistura de português com italiano, eram muito presunçosos e gostavam de contar vantagens, eram gargantas mesmo como dizia meu pai. Por isso não era surpresa a conversa do velho.
- O senhor falou com algum de seus filhos sobre isso?
- Não, porém já deixei escapar minha opinião algumas vezes. Nem quero vê-los nestes dias! Por isso, estou cavalgando! – disse o velho.
- É provável que eu fique com minha velha, quietinhos na casinha que minha filha, Natividade, construiu lá perto do casarão.
Por alguns segundos ele ficou pensativo.
- Que felicidade encontrá-lo aqui! Recordo-me que você e o Paulo foram bons amigos na infância e na adolescência... O Paulo, meu filho de Americana, pode assumir uma liderança. Ele é também maleável, e respeita-o muito, pois vocês também estudaram juntos. Você deve procurá-lo ainda hoje. Eles estão lá reunidos, resolvendo este assunto. Aproveita e toma uma cerveja gelada e poderá dar bons conselhos, você já viveu a experiência da fazenda do compadre. O Paulinho vai ouvi-lo, aí já serão dois a favor, então a metade, pois o Jacinto conhece muito bem o meu sonho da velhice. Com uma boa conversa poderá convencer mais um, confio no seu preparo e na sua cultura.
Depois de um quarto de hora de conversa, o velho saiu troteando no seu negro cavalo e sumiu como um fantasma, quase levitando, por detrás do verdejante arvoredo que circundava o riacho.
Eu fiquei pensativo, que homem estranho... Eu, de fato, havia jogado algumas trucadas com ele, mas há quanto tempo não via aquela família. Somente fui ao casamento de um ou dois dos irmãos, nem conhecia os cônjuges. Por que o velho me escolhera? Também... Que idéia xeretear no riacho que passava pela sua propriedade.
No fundo era um desafio, eu me sentia importante, aquele velho surgira, não sei da onde, lançara-me uma tarefa. Eu não podia desapontar meu falecido pai que decerto estaria ao meu lado.
Às vinte horas parti para casa dos Bertis, no caminho ia matutando, por onde começava? Será que o seu Somindo estaria por lá? A sensação era negativa. Não? Por que não? Será que ele não se intrometeria como me dissera?
Chegando á casa dos Bertis, fui muito bem recebido pelo Doutor Paulo, que foi encontrar-me ao portão:
- Seja bem vindo! Acho que chegou em boa hora, estamos assando uma carninha. Temos cerveja e estamos discutindo um assunto importante. Como você participou do processo de venda da fazenda do seu pai, poderá usar de sua experiência para trocarmos idéias.
- Então, Dr. Paulo, hoje, tomei a liberdade de fazer uma saudável caminhada pelo riacho que corta o sítio pertencente a sua família. Aquele que foi do Maranda. Está lindo! Cheio de árvores frondosas! Isso me incentivou a vê-los.
- Legal! Sabe que, após o falecimento de minha mãe, meu pai passeava a cavalo todos os dias naquelas terras. Algo o agradava tanto, parecia que encontrava energias em boas recordações para continuar vivendo.
Nisso chegou sua irmã com a chave para abrir o cadeado da porteira.
- Eh! Foi bom em quanto durou, mas no final...
Os dois entreolharam-se, fitando-se, como estivessem censurando um ao outro.
Ela exclamou de forma estranha, depois suspendeu a frase, como quem se arrependesse de meter a colher na conversa.
Se não fosse a penumbra da noite e eu não estivesse ainda do outro lado da porteira, já que estavam com dificuldades para abri-la. Teriam notado meus cabelos arrepiados, meu peito estremecendo, minhas pernas bambas, cambaleando.
Coincidências estranhas naquela beira de riacho. Os Bertis segredavam alguma coisa, como sentissem vergonha de falar.
Ele deixara-me muito à vontade. Apesar disso, eu estava gaguejando, troquei nomes, errei até o nome de minha falecida mãe, quando me reapresentei aos irmãos e às respectivas esposas e maridos.
Eu sentia certa insegurança, e se de repente eu falar do velho? Imaginou eu perguntar: - Seu pai não vem provar o churrasco?
Logo pude observar que embora tivessem reformado o casarão antigo de madeira, estava um bagaço, as benfeitorias também estavam caindo aos pedaços. Mangueira, tronco, paiol e quintal, quase apodrecendo, pois o churrasco era numa espécie de garagem ou uma antiga tulha, transformada em um barracão, bem próxima à mangueira. Pelo que pude notar não havia um bezerro sequer.
Dialogando com os quatro irmãos, como me falara o velho, logo percebi que o assunto era mesmo a propriedade, o que fazer da fazendinha.
Devagar tomei conhecimento da situação. Logo tive oportunidade de tomar uma gelada só com o Paulinho, reservado, num canto, e percebi que ele também não desejava desfazer da propriedade. Queria manter a tradição, um bem histórico, parte vinha dos avós, e parte seu pai adquiri-la com muito suor, valia a pena preservar, mas como?
Evitando-me envolver num assunto de família, eu, aos poucos, fui fazendo perguntas e, entre goles de cerveja, dava algum palpitinho, sempre objetivando transmitir o pedido do velho.
- Pelos meus longos anos de vida, já deu para eu notar que os velhos são apegados à terra. Meu pai também era assim. Acredito que o seu, igualmente, prefira que o sítio permaneça inalterado. Tudo como se fosse uma grande empresa, pertencente a uma sociedade de filhos.
Eu nem percebera que estava falando no presente.
Continuei:
- Preservar uma propriedade é sempre nosso sonho. Vocês tiveram uma infância feliz aqui, tiveram também uma boa adolescência. Em todo o tempo seu pai tirou sustento da terra. Parece que o sinto aconselhando-me a investir na propriedade, é uma inspiração que não sei da onde vem.
Falei de algumas experiências que eu tinha visto, tanto na prática como em leituras. Eu lera várias vezes sobre esse assunto, pois eu ainda era apaixonado por fazendas.
- O gado nelore, por exemplo, dará pouca mão de obra, um só caseiro tomará conta. Dará alguma despesa para reformar a mangueira, para aquisição, mas logo virá o lucro. Mas o mais importante será preservar este bem tradicional da família.
De repente escapou uma pergunta:
- Vocês têm cavalos? Tem montado algumas vezes?
- Sim, ainda temos alguns, inclusive o negro que meu pai comprou daquele seu parente criador de cavalos. Mas quase não sabemos montar. Meu pai, sim! Em qualquer ocasião foi um bom cavaleiro. Chegou a ser domador! Na raia também gostava de montar seus cavalos quando corriam parelhas.
Como percebi que o Paulinho estava animado, portanto faltava tentar convencer mais uma herdeira para alcançar a maioria.
Logo surgiu essa oportunidade, pois a terceira filha viera me fazer perguntas, e logo admitiu a possibilidade de manter o sítio. Era um sonho de todos. Aceitava até investir no mesmo, embora repetisse que: - Transformá-lo em dinheiro, fazia até cócegas na mão.
Eu falava com tanta desenvoltura, repetia o discurso que ouvira na beira do rio. Usava o presente:
- Sei como seu pai deve sentir-se! Ele era apegado a terra! O dinheiro nem sempre é o mais importante! Imagine! Todos os fins de semana vocês poderão vir até aqui e olhar aquele baita gadão! Que grande grau de satisfação para todos os irmãos! Vocês constantemente vão dizer: “Ai se meu pai pudesse estar aqui.”
Depois de ter testado a reação dos amigos com palavras, eu tive quase certeza de que podia tomar uma posição mais segura.
Após três ou quatro horas de conversa que mantive com aquela família, senti-me importante, um conselheiro vindo de outro mundo, decisivo, senhor do dever cumprido.
Saí acreditando que tinha atingido os meus objetivos, conforme pedira com tanto empenho, aquele senhor ancião, amigo de meu pai, lá na beira do riacho, embora levitando. Pensei com meus botões, depois estremeci de medo. E se o tal velho me cerca aqui na estrada? Nossa! Já pensou atropelar esse quase sobre natural! Aí o carro quase foi mesmo parar no bueiro, tamanho era meu medo, embora eu levasse na gozação.
No dia seguinte eu ainda tive ousadia, voltei à beira do riacho, estava curioso. Eu de fato fora muito corajoso. Mas, como já esperava, o velho tinha acabado sua missão e havia alcançado a paz de que tanto precisava.

José Benedito Ferraz da Silveira

A BORBOLETA AZUL

A BORBOLETA AZUL


Oh! Linda borboleta azul, raríssima, que encantou minha infância
Com seu saltitante vôo sobre o riacho, cujo leito circundava, no
Meio da mata sombria.
Pensei em capturá-la, mas percebi que era muito mais gratificante
Manter-me sentado numa pedra à beira do riacho. Vê-la sobrevoar,
Em liberdade, de uma margem a outra do rio. Fotografar e filmar as
Suas peripécias logo acima das águas cristalinas.

Oh, doce garota, que iluminavas meu caminho, quantas vezes
Nossos olhares penetrantes se cruzaram e estremeceram nossos
Corações. Eu ficava atônito quando te contemplava até o teu lento
Desaparecimento no meio do trânsito, pois tal como o lepidóptero,
Tu sempre desaparecias no momento do meu êxtase.

Como na infância optei por simplesmente deleitar-me a observar
As deslumbrantes batidas de asas do lindo inseto, decidi também
Apenas deliciar-me a distância com nossos encontros casuais. A
Noite, ao pensar em ti, minha linda donzela, adormecia só em
Sonho profundo, tendo delírios de amor platônico.

Hoje comparo a mulher de meus sonhos à linda borboleta azul
Pela imensa beleza de ambas, porém, enquanto permitiria que o
Inseto continuasse a dar seu espetáculo em liberdade, tu, minha
Linda donzela, deverias estar aprisionada ao meu singelo coração.

José Renato Ferraz da Silveira

Ollanta Humala - Lula andino ou Chávez peruano?

Ollanta Humala - Lula andino ou Chávez peruano?

DE LIMA - O candidato de esquerda Ollanta Humala se consolidou como líder na campanha eleitoral peruana. Nos últimos levantamentos --que não puderam ser publicados no país, por lei eleitorais que determinam lei-seca de pesquisas a uma semana do pleito-- Humala aparece com 28% dos votos, seguido de Keiko Fujimori com 21%. Keiko é uma populista de direita que é filha do ex-presidente Alberto Fujimori, atalmente cumprindo pena de 25 anos por corrupção e violações de direitos humanos.
Em 2006, quando se enfrentaram no segundo turno Ollanta Humala e o atual presidente Alan García, o Nobel peruano Mario Vargas Llosa comparou a disputa a uma escolha entre "o câncer e a aids". Ontem, ao descrever um possível segundo turno entre Humala e Keiko, afirmou: "seria verdadeiramente uma catástrofe para o Peru."
A grande pergunta que atormenta analistas e parte dos eleitores é a seguinte: Humala realmente se transformou em um candidato mais moderado, ou é apenas "lobo em pele de cordeiro", como acusa seu rival Alejandro Toledo?
Para se tornar mais palatável ao grosso do eleitorado, que teme sua postura agressiva e estatizante, Humala lançou sua versão 2011 - Ollanta Paz e Amor. Para isso, teve ajuda dos petistas Valdemir Garreta e Luís Favre, que atuam na campanha do candidato, que teve direito até a sua "Carta ao povo Peruano", nos moldes da Carta ao povo brasileiro de Lula.
Conversei longamente com Salomon Lerner, o chefe da campanha de Humala. Ele me garante que não se trata apenas de retórica de campanha. "Ollanta amadureceu, abandonou posturas mais radicais que tinha em 2006, nós aprendemos com a história." Humala quer distância de Hugo Chávez, que deu uma rasante no Peru na reta final da eleição passada e enterrou as chances do candidato peruano no segundo turno do pleito de 2006. Assim me garante Salomon, ativista da comunidade judaica que conheceu Humala em 2005, quando o candidato foi acusado de ter posições anti-semitas. Acabaram ficando muito próximos e ele passou a chefiar sua campanha.
Houve, está claro, um "extreme makeover" na imagem de Humala. Está fora o look combatente de selva. Agora, usa ternos bem cortados, ou camisas azuis. Sorri bem mais. Ostenta sua fé católica. No debate, fez tanto esforço para não parecer agressivo, que não entrou em disputa nenhuma com os outros candidatos --e tentou responder muito pouco.
Mas entre os pontos polêmicos, como renegociação de contratos com mineradoras, concessões para as hidroelétricas construídas por empresas brasileiras na Amazônia peruana, reforma da constituição, ele ainda precisa explicar mais. Muito do que propõe, de fato, está em estudos no Brasil e foi feito até no Chile, no caso de aumento de royalties da mineração. Não se rompem contratos. Simplesmente se negocia com as empresas quando terminam os contratos --e, no Peru, grande parte vence em 2012 e 2013. Ou tenta-se adiantar os reajustes, mediante barganhas. Tudo dentro do jogo capitalista.
Dentro da campanha, há a visão de que se deve seguir o modelo brasileiro de engordar o mercado doméstico e não apenas depender de exportação de matérias-primas. E, dentro disso, aumentar as contrapartidas das multinacionais que estão explorando recursos no país --seja por meio de aumento nos royalties, ou exigindo agregação de valor.
O povo peruano quer melhor distribuição de renda e sente-se injustiçado pela exploração dos recursos naturais do país, cujas riquezas não chegam até suas mãos. Mas eles reconhecem que o Peru é uma história de sucesso. A estabilidade macroeconômica construída por Toledo, Alan García e, até, Fujimori, foram muito importantes para o atual crescimento. O desafio é manter a estabilidade, mas agregar políticas sociais.
No caso de Humala, falta muito a ser explicado para que possamos saber se ele está mais para Lula ou mais para Chávez. E as propostas para reforma constitucional, com seus ecos chavistas ou até fujimoristas, ainda assustam.

Patrícia Campos Mello é repórter especial da Folha, Escreve sobre política e economia internacional. Foi correspondente em Washington durante quatro anos, onde cobriu a eleição do presidente Barack Obama, a crise financeira e a guerra do Afeganistão, acompanhando as tropas americanas. Tem mestrado em Economia e Jornalismo pela New York University. É autora dos livros "O Mundo Tem Medo da China" (Mostarda, 2005) e "Índia - da Miséria à Potência" (Planeta, 2008).

Ollanta Humala - Lula andino ou Chávez peruano?

Ollanta Humala - Lula andino ou Chávez peruano?

DE LIMA - O candidato de esquerda Ollanta Humala se consolidou como líder na campanha eleitoral peruana. Nos últimos levantamentos --que não puderam ser publicados no país, por lei eleitorais que determinam lei-seca de pesquisas a uma semana do pleito-- Humala aparece com 28% dos votos, seguido de Keiko Fujimori com 21%. Keiko é uma populista de direita que é filha do ex-presidente Alberto Fujimori, atalmente cumprindo pena de 25 anos por corrupção e violações de direitos humanos.
Em 2006, quando se enfrentaram no segundo turno Ollanta Humala e o atual presidente Alan García, o Nobel peruano Mario Vargas Llosa comparou a disputa a uma escolha entre "o câncer e a aids". Ontem, ao descrever um possível segundo turno entre Humala e Keiko, afirmou: "seria verdadeiramente uma catástrofe para o Peru."
A grande pergunta que atormenta analistas e parte dos eleitores é a seguinte: Humala realmente se transformou em um candidato mais moderado, ou é apenas "lobo em pele de cordeiro", como acusa seu rival Alejandro Toledo?
Para se tornar mais palatável ao grosso do eleitorado, que teme sua postura agressiva e estatizante, Humala lançou sua versão 2011 - Ollanta Paz e Amor. Para isso, teve ajuda dos petistas Valdemir Garreta e Luís Favre, que atuam na campanha do candidato, que teve direito até a sua "Carta ao povo Peruano", nos moldes da Carta ao povo brasileiro de Lula.
Conversei longamente com Salomon Lerner, o chefe da campanha de Humala. Ele me garante que não se trata apenas de retórica de campanha. "Ollanta amadureceu, abandonou posturas mais radicais que tinha em 2006, nós aprendemos com a história." Humala quer distância de Hugo Chávez, que deu uma rasante no Peru na reta final da eleição passada e enterrou as chances do candidato peruano no segundo turno do pleito de 2006. Assim me garante Salomon, ativista da comunidade judaica que conheceu Humala em 2005, quando o candidato foi acusado de ter posições anti-semitas. Acabaram ficando muito próximos e ele passou a chefiar sua campanha.
Houve, está claro, um "extreme makeover" na imagem de Humala. Está fora o look combatente de selva. Agora, usa ternos bem cortados, ou camisas azuis. Sorri bem mais. Ostenta sua fé católica. No debate, fez tanto esforço para não parecer agressivo, que não entrou em disputa nenhuma com os outros candidatos --e tentou responder muito pouco.
Mas entre os pontos polêmicos, como renegociação de contratos com mineradoras, concessões para as hidroelétricas construídas por empresas brasileiras na Amazônia peruana, reforma da constituição, ele ainda precisa explicar mais. Muito do que propõe, de fato, está em estudos no Brasil e foi feito até no Chile, no caso de aumento de royalties da mineração. Não se rompem contratos. Simplesmente se negocia com as empresas quando terminam os contratos --e, no Peru, grande parte vence em 2012 e 2013. Ou tenta-se adiantar os reajustes, mediante barganhas. Tudo dentro do jogo capitalista.
Dentro da campanha, há a visão de que se deve seguir o modelo brasileiro de engordar o mercado doméstico e não apenas depender de exportação de matérias-primas. E, dentro disso, aumentar as contrapartidas das multinacionais que estão explorando recursos no país --seja por meio de aumento nos royalties, ou exigindo agregação de valor.
O povo peruano quer melhor distribuição de renda e sente-se injustiçado pela exploração dos recursos naturais do país, cujas riquezas não chegam até suas mãos. Mas eles reconhecem que o Peru é uma história de sucesso. A estabilidade macroeconômica construída por Toledo, Alan García e, até, Fujimori, foram muito importantes para o atual crescimento. O desafio é manter a estabilidade, mas agregar políticas sociais.
No caso de Humala, falta muito a ser explicado para que possamos saber se ele está mais para Lula ou mais para Chávez. E as propostas para reforma constitucional, com seus ecos chavistas ou até fujimoristas, ainda assustam.

Patrícia Campos Mello é repórter especial da Folha, Escreve sobre política e economia internacional. Foi correspondente em Washington durante quatro anos, onde cobriu a eleição do presidente Barack Obama, a crise financeira e a guerra do Afeganistão, acompanhando as tropas americanas. Tem mestrado em Economia e Jornalismo pela New York University. É autora dos livros "O Mundo Tem Medo da China" (Mostarda, 2005) e "Índia - da Miséria à Potência" (Planeta, 2008).

O horror, o horror

O horror, o horror

Incompreensível, inexplicável, abominável, execrável, odioso, nefando, aterrorizante, paralisante, inominável, ignominioso.
Nem mesmo recorrendo ao dicionário, nem conseguindo reunir uma dezena de palavras ou mais, tampouco os argumentos todos que se arregimentarem aqui serão suficientes para, remotamente, descrever a indignação, a dor na alma, o pasmo causado pelo massacre do Rio de Janeiro.
Crianças, meus filhos, seus filhos, brasileirinhos, como disse nossa inconformada presidente, ceifados assim, sem mais, na sua inocência e na sua impotência.
Tanta atrocidade em nome de Deus?
Qual deus, perguntou na Folha o colunista Rui Castro?
Será que é o mesmo deus que o homem, desde seus primórdios, usa para justificar sua maldade, uma maldade que, anos, décadas, séculos de iluminismos depois, permanece arraigada firmemente à alma humana?
É o indelével carimbo da maldade no DNA humano.
A maldade da qual o homem não se livra jamais.
A maldade dos que até tempos atrás empalavam seus inimigos.
A maldade dos que ainda hoje apedrejam suas mulheres até a morte.
A maldade dos que pregavam na cruz seus detratores --é só entrar em qualquer igreja católica que lá veremos o tradicional instrumento de tortura.
A maldade dos que traziam das batalhas os escalpos de suas vítimas.
A maldade dos que fechavam a porta e abriam o gás.
A maldade dos que extirpam clitóris em nome de uma moral selvagem.
Sim, é ela, a mesma maldade de quem abre fogo contra crianças.
Exatamente a mesma, a maldade humana em sua mais pura manifestação, límpida, transparente.
Em seu raro e derradeiro momento de lucidez, o personagem Kurtz de "No Coração das Trevas" (romance seminal do inglês Joseph Conrad, que inspirou o filme "Apocalipse Now", de F.F. Coppola) define em uma frase a iniquidade de sua condição, envolto em medo, escuridão e canibais fanáticos, ao mesmo tempo em que com desenha com maestria o contexto de seus mais baixos instintos, que são os mesmos de todos nós.
"O horror, o horror."
Sim, ele está falando do homem, do Homem e de tudo o que ele é capaz.
Loucura, fanatismo, surto, trauma: podem culpar quem e o que quer que seja, muçulmanos, cristãos, pirados e pedófilos, que não adianta, nada explica: a única razão para tirar da vida as 12 crianças de Realengo foi a maldade.
A maldade cuja marca está na alma de todos nós e que de tempos em tempos diz a que veio.
Vai, mas volta...

Luiz Caversan, 55 anos, é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve aos sábados para a Folha.com.

Fundo do poço fundo

Fundo do poço fundo

Três acontecimentos da semana passada transportaram a atual crise financeira global (iniciada em 2008) para um novo estagio.

Quebrado, Portugal caiu de joelhos e pediu socorro externo (juntando-se a Grécia e Irlanda). Nos EUA, o governo quase se viu obrigado a fechar museus e zoológicos públicos por conta de impasses orçamentários.

Por fim, o Banco Central Europeu (BCE) elevou, apesar de toda a crise, sua taxa básica de juro para conter a atividade econômica. Por trás do movimento, o risco global da inflação. Ela também já faz estragos no Brasil.

No ano passado, Grécia e Irlanda já haviam sido socorridas com cerca de 80 bilhões de euros (R$ 185 bi) cada com dinheiro europeu e do FMI.

Agora é a vez de Portugal pagar pelos excessos de gastos e financiamentos irresponsáveis a mutuários e consumidores que levaram o mundo à atual crise. O resgate pode custar outros 80 bilhões de euros.

Por fazerem parte da zona do euro e terem a mesma moeda que Alemanha e Franca, essa trinca de quebrados não pode desvalorizar suas divisas e recuperar a atividade econômica aumentando a competitividade de suas exportações.

Logo, terão de cortar na carne, no orçamento, para pagar por esses empréstimos bilionários. É de se esperar mais queda na atividade entre eles, e um prolongamento de sua agonia.

O aumento dos juros na zona do euro (para 1,25% ao ano, com viés de alta) para conter a inflação só piora o quadro geral na Europa.

Na Espanha, outro pais na lista dos "quebráveis", 90% dos financiamentos imobiliários estão atrelados à taxa básica de juros. O aumento de 0,75% nesse indicador esperado para 2011 custara, em media, mais 1.000 euros (R$ 2.300) aos mutuários espanhóis, deprimindo ainda mais a atividade em um pais já com sérios problemas orçamentários.

Esse também é hoje o maior problema dos EUA. Embora seja a primeira das grandes economias avançadas (zona do euro e Japão são as outras) a ensaiar uma recuperação, o governo está deficitário como nunca.

Na semana passada, Barack Obama teve de engolir birras dos adversários republicanos e concordar com um corte de US$ 38 bilhões (R$ 63 bi) para o governo não parar. Nos dias que antecedem o acordo e esperando pelo pior, o governo proibiu o uso de BlackBarries de funcionários em atividades não essenciais para economizar.

Agora, Obama luta para elevar o teto do endividamento americano para o recorde histórico (sob qualquer comparação) de US$ 14,25 trilhões. Para pagar isso, os EUA precisariam do equivalente a quase sete vezes o que o Brasil produziu (seu PIB) em 2010.

Paradoxalmente, mas não tanto, as empresas americanas voltaram a ganhar dinheiro e a Bolsa de Nova York retornou ao patamar pré crise de 2008. O desemprego segue elevado, em 8,8%, mas já esteve acima de 10% no auge dos problemas.

A recuperação se dá justamente porque o governo inundou a praça com dinheiro barato para tirar o país do buraco, se endividando como nunca.

Se o mundo chegou ou não ao fundo do poço da crise de 2008 segue algo difícil de saber.

Certo é que o alto endividamento estatal nos EUA e em vários países europeus segue como imenso quebra-molas no caminho da recuperação.


Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha.com.

Guerra na África é nova corrida imperialista, diz Fiori

Guerra na África é nova corrida imperialista, diz Fiori

ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO

A guerra na Líbia faz parte de uma nova corrida imperialista que vai se aprofundar, diz José Luís Fiori, coordenador do programa de pós-graduação em economia política internacional da UFRJ. Para ele, potências disputam recursos estratégicos na África, mas os conflitos não têm a ver apenas com o petróleo. Nesta entrevista, Fiori fala também sobre o poder dos EUA, que ele enxerga vivendo uma crise se crescimento. A seguir a íntegra da entrevista.

Folha -Como o sr. analisa a guerra na Líbia?
*José Luís Fiori-" É evidente que não se trata de uma discussão sobre o direito a vida dos líbios, ou sobre os chamados direitos humanos, e menos ainda, sobre democracia. Nesta, como em todas as demais intervenções deste tipo, de europeus e dos EUA, feitas neste último século, jamais se esclarece a questão central de quem tem o direito de julgar e arbitrar a existência ou não de desrespeito aos direitos humanos em algum país em particular, e quem determina o lugar em que a "comunidade internacional" deve ou não intervir para defender vidas e direitos. Com relação a quem arbitra, são sempre os mesmos países que Samuel Huntington chamou de "diretório militar" do mundo, ou seja, EUA, Inglaterra e França. E, com relação aos critérios da arbitragem, é óbvio que este diretório jamais intervém contra um país, ou contra um governante aliado, por mais autoritário e anti-democrático que ele seja, e por mais que ele desrespeite os direitos defendidos pelos europeus e pelos norte-americanos. Independentemente do que se pense sobre o fundamento e a universalidade dos direitos humanos, não há a menor dúvida que, do ponto de vista das relações entre os Estados dentro do sistema mundial, eles sempre são esgrimidos e utilizados como instrumento de legitimação das decisões geopolíticas e geo-economicas das grandes potencias. Por isto, as decisões sobre este assunto nos foros internacionais são sempre políticas e instrumentais e variam segundo a vontade e segundo os interesses estratégicos destas grandes potências.

A guerra é sobre o petróleo?
O que está em jogo na Líbia não é apenas Petróleo. Nem tudo no mundo da geopolítica e da luta de poder entre as grandes e médias potências tem a ver com energia, ou mesmo, com economia. Neste caso, está em jogo o controle de uma região fronteiriça da Europa, parte importante do Império Romano, e território privilegiado do alterego civilizatório da "cristandade". Foi por onde começou o colonialismo europeu, no século 15 e depois, de novo, no século 19. Acho que já estamos assistindo uma nova corrida imperialista na África, e que não é impossível que se volte a cogitar de alguma forma renovada de colonialismo.

Como seria essa corrida imperialista? O que deve acontecer por lá? As revoltas árabes em curso terão algum impacto no poder dos Estados Unidos na região e no mundo?
Durante a década de 90, generalizou-se a convicção de que a África seria um continente inviável e marginal dentro do processo vitorioso da globalização econômica. Tratava-se de um continente que não interessaria às grandes potências nem às suas corporações e bancos privados. Mas a África não é tão simples nem homogênea, com seus 53 Estados, cinco grandes regiões e seus quase 800 milhões de habitantes. Um mosaico gigantesco e fragmentado de Estados, onde não existe um verdadeiro sistema estatal competitivo, nem tampouco se pode falar de uma economia regional integrada De fato, o atual sistema estatal africano foi criado pelas potências coloniais europeias e só se manteve integrado, até 1991, graças à guerra fria e à sua disputa bipolar. Depois da guerra fria e do fracasso da intervenção dos Estados Unidos na Somália, em 1993, os EUA redefiniram sua estratégia para o continente negro: propondo, como objetivo central, o crescimento econômico, através dos mercados, da globalização e da democracia. Mas de fato, a preocupação dos Estados Unidos com a África se restringiu até o fim do século 20, quase exclusivamente, à disputa das regiões petrolíferas e ao controle e repressão das forças islâmicas e dos grupos terroristas do Chifre da África. Mas deverá ocorrer uma mudança radical, nas próximas duas décadas, do comportamento norte-americano e dos europeus, graças à invasão econômica da China da Rússia, da Índia e, inclusive, do Brasil. A África será de novo um ponto central da nova corrida imperialista que já está em curso e que deverá se aprofundar ainda mais na próxima década Neste período, não é improvável, inclusive, que as velhas e novas potências do sistema mundial, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos da África, voltem a pensar na possibilidade de conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos que foram criados pelos próprios colonialistas europeus. E é nesta perspectiva que acho que deve refletir sobre a reação européia e norte-americana frente às revoltas árabes. E, em particular, no caso da intervenção militar na Líbia, comandada pela Otan e liderada pelos EUA, Inglaterra e França.

Os EUA estão ameaçados de perder poder no Oriente Médio?
Sempre existe o risco de perda do controle que já tinham conquistado na situação anterior à rebelião. Mas, neste caso, não vejo este risco. Pelo contrário, acho que são os mesmos de sempre que estão redistribuindo as cartas e manipulando as divisões internas dentro dos governos e dos envolvidos nas rebeliões. Quando houver risco real, reprimirão como fizeram no Bahrein. Sempre que possível através das mãos de terceiros.

Para o sr. não há perda da hegemonia norte-americana?
Os EUA estão enfrentando neste momento os problemas, contradições e incertezas produzidas pela sua mudança de status _ da condição de "potência hegemônica do mundo capitalista, até a década de 1980, para a condição de "potência imperial", assumida progressivamente depois de 1991. Poderia até se chamar de uma "crise de crescimento", e não uma "crise terminal". E o seu "declínio relativo", de que tanto se fala na imprensa, com relação à expansão asiática e à sua provável ultrapassagem econômica pela China ,não atingirá a posição dos EUA, como pivot do sistema mundial, nas próximas duas décadas, pelo menos.
Este novo estatuto imperial dos EUA deve fazer com que mudem sua forma de administrar o seu poder global. Esta mudança será lenta e complicada, dentro e fora dos EUA. Muitos analistas confundem a trepidação própria deste processo de mudança com uma "crise terminal" do poder americano no mundo. A partir de agora, e cada vez mais, os EUA deverão adotar uma posição mais distante e arbitral com relação às lutas de poder em todos os tabuleiros geopolíticos do mundo. Só intervindo em última instância e, de preferência, através das mãos de terceiros países. E deverão promover ativamente todo tipo de divisões internas, dentro e fora dos principais países dentro de cada um destes tabuleiros. Seguindo o modelo clássico da administração imperial da Grã-Bretanha, durante o século 19. Isso não acontecerá sem conflitos. Mas este será o jogo que estará sendo jogado nas próximas duas décadas: de um lado, os EUA atuando como cabeça de império, se distanciando, e só intervindo em última instância, e, do outro, as demais potências regionais tentando escapar do cerco americano, através de coalizões de poder que neutralizem o divisionismo estimulado pelos EUA.

Quais as diferenças em relação ao império britânico?
Trata-se de um sistema imperial muito mais complexo e instável do que foi o império britânico, porque ele é supra-nacional sem ser colonial. E envolve, potencialmente, 195 Estados e economias nacionais, que são ou se consideram soberanos. As fronteiras deste império não são fixas nem territoriais e podem ser redefinidas a cada momento pelo poder global militar e financeiro dos EUA. E, dentro deste sistema, a expansão contínua do poder e da riqueza americana promovem e fortalecem algumas novas potências emergentes que deverão competir com os EUA, nas próximas décadas, pelas hegemonias regionais do mundo. É importante sublinhar que este novo tipo de império não exclui a possibilidade de derrotas ou fracassos militares localizados dos EUA. Pelo contrário: é a própria expansão vitoriosa dos EUA - e não o seu declínio_ que vai promovendo os conflitos e as guerras. E, do ponto de vista estritamente militar, o essencial para o novo poder imperial americano é impedir que alguma potência regional ameace a sua supremacia naval em qualquer região do mundo. E, é óbvio, impedir que ocorra uma guerra hegemônica capaz de atingir a sua supremacia militar global.

Não há limites para este poder?
É óbvio que este novo poder imperial não é absoluto nem será eterno. Como já foi dito, sua expansão contínua cria e fortalece poderes concorrentes. E desestabiliza e destrói os equilíbrios e as instituições, criadas pelos próprios EUA, estimulando a formação de coalizões de poder regionais que acabarão desmembrando aos poucos o seu poder imperial, como aconteceu com o império romano. Por outro lado, a nova engenharia econômica mundial deslocou o centro da acumulação capitalista e transformou a China numa economia com poder de gravitação quase equivalente ao dos Estados Unidos. Esta nova geo-economia internacional intensifica a competição capitalista e já deu início à uma "corrida imperialista", cada vez intensa na África e na América do Sul, aumentando a possibilidade e o número dos conflitos localizados entre as grandes potências. Além disso, o poder imperial norte-americano deverá enfrentar uma perda de legitimidade crônica dentro dos EUA, porque a diversidade e a complexidade nacional, étnica e civilizatória do seu império é absolutamente incompatível com a defesa e a preservação de qualquer tipo ou sistema de valores universais, como pretendem os norte-americanos. Daí o aumento das divisões, cada vez mais profundas, dentro do establishment da política externa dos EUA, e também dentro da sociedade americana, com aumento da radicalização das posições e conflitos, como no caso do Tea Party, e das manifestações Madison, Wisconsin etc. De qualquer forma, é possível dizer, com relação ao futuro, que não existe nenhuma lei que defina a sucessão obrigatória e a data do fim da supremacia americana. Mas é absolutamente certo que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará automaticamente a China numa potência global nem, muito menos, no líder do sistema mundial. Além disso, é possível afirmar que terminou definitivamente o tempo dos pequenos países conquistadores. O futuro do sistema mundial envolverá, daqui para frente, uma espécie de guerra de posições permanente entre grandes países continentais, como é o caso pioneiro dos EUA, e agora é também o caso da China, Rússia, Índia e Brasil.

O sr. tem afirmado que a partir dos anos 1970, depois da consolidação do novo sistema monetário internacional "dólar flexível", os EUAs conquistaram um poder sem precedentes no capitalismo. Mas a crise financeira recente não expôs fragilidades desse sistema? Não há um declínio nessa hegemonia?
É verdade que depois da crise dos anos 70, a política monetária dos EUA, junto com a desregulação dos seus mercados financeiros, contribuíram decisivamente para o nascimento do novo sistema monetário internacional dólar-flexível, que já dura mais do que o sistema de Bretton Woods. E não há dúvida de que esse novo sistema transferiu para os Estados Unidos um poder monetário e financeiro sem precedente na história da economia mundial. Simplesmente porque, segundo as novas regras que não foram consagradas por nenhum tipo de acordo internacional, os EUA passaram a arbitrar simultaneamente o valor da sua moeda, que é nacional e internacional a um só tempo, junto com o valor dos seus títulos da dívida, que absorvem a poupança de todo o mundo e servem de âncora para o próprio sistema liderado pela moeda norte-americana. E finalmente, como consequência, os EUA podem redefinir, a cada momento, o valor das suas próprias dívidas, sem que seus credores possam reclamar sem sair perdendo. Nesse sistema, toda crise financeira da economia americana acaba afetando, em maior ou menor grau, a economia mundial, através da própria corrente financeira global do dólar flexível. Estas crises se repetirão mas elas não são necessariamente um sinal de fragilidade. Ás vezes, podem ser até um sinal de poder e o início de um novo ciclo expansivo. De qualquer maneira, estas crises não deverão alterar a hierarquia econômica internacional, enquanto o governo e os capitais americanos puderem repassar os seus custos, para as demais potências econômicas do sistema.
Aí, o conceito de hegemonia é extremante amplo e gelatinoso. Vai desde o exercício puro e simples da supremacia militar até a ideia de liderança econômica e moral dos povos. Acho que o poder global dos EUA, hoje, já não tem a ver com o sentido gramsciano de hegemonia. Trata-se de um poder imperial global, militar e financeiro. Ele inclui a possibilidade e a necessidade destas crises, que inclusive podem acabar resultando numa escalada ainda mais ampla de poder e riqueza _como aconteceu com os EUA, depois da crise dos anos 70 do século passado. Com exceção de um pequeno período de alguns poucos anos na década de 1990, nunca ninguém acreditou que o mundo fosse unipolar. Do meu ponto de vista, dentro do sistema inter-estatal em que vivemos, o conceito de multipolaridade é rebarbativo e tem pouco relevância do ponto de vista teórico. A despeito de que seja um termo útil no mundo diplomático.

O dinamismo da China não trará necessariamente consequências geopolíticas? Ela não deverá abandonar paulatinamente sua posição de fragilidade diplomática por uma ação mais enfática na diplomacia mundial? É possível enxergar a China como potência hegemônica mundial?
Hoje não há duvida que a grande novidade dentro do sistema mundial é a expansão econômica da China, e a sua disposição crescente de lutar pela hegemonia política e militar regional, na Ásia e no Pacífico Sul. Mas do ponto de vista geopolítico, o mais provável - nas próximas duas décadas pelo menos _ é que a China se restrinja à esta luta pela hegemonia regional, mantendo-se fiel à sua estratégia atual de não provocar nem aceitar nenhum tipo de confronto fora dessa sua zona de influência. Mas se a China seguir o caminho de todas as grandes potências do sistema inter-estatal capitalista, em algum momento futuro, terá que combinar a sua nova centralidade econômica mundial com algum tipo de projeção do seu poder político e militar para fora da sua própria região imediata. Mas há que ter em conta que a China tem uma posição geopolítica desfavorável, com um território interior amplo e cercado e uma fronteira marítima muito extensa, não contando ainda com um poder naval capaz de se impor ao controle norte-americano do Pacífico Sul. Sem poder naval, a China não irá muito longe. E tomarão muitos anos ainda para que a China venha a ter uma capacidade naval capaz de ameaçar o controle marítimo global da marinha norte-americana. O próprio Japão tem uma capacidade naval maior do que a China. E, com certeza, os EUA deverão incentivar o aumento do poder militar do Japão e da Coréia, com vistas a um equilíbrio de poder regional, que contenha a China dentro de sua própria região.

Como o sr. observa a posição europeia nesse jogo de poder?
Depois de 1991, aumentou o número de sócios da União Europeia e a extensão territorial coberta pela Otan. Mas a União Europeia está cada vez mais fraca, dividida e desorientada sobre como conduzir seus assuntos internos e sobre como se reinserir no novo sistema internacional, depois do fim da guerra fria e da reunificação da Alemanha. Está ficando cada vez mais claro qual a verdadeira causa desta perda de rumo: a União Europeia não dispõe de um poder central unificado e homogêneo, capaz de definir e impor objetivos e prioridades estratégicas, ao conjunto dos seus associados. Além disto, ela está cada vez mais dividida entre os diferentes projetos para a Europa: da França, Grã-Bretanha e Alemanha, que são seus Estados líderes e que têm entre si divergências estratégicas seculares. Divergências que ficaram adormecidas até o fim da Guerra Fria, mas que reapareceram depois com a reunificação da Alemanha e o ressurgimento da velha Rússia dentro do cenário geopolítico europeu. Com a sua reunificação, a Alemanha se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa mais autônoma, centrada nos seus próprios interesses nacionais. E, nesta linha, vem se envolvendo cada vez mais com a hegemonia da Europa Central. Ao mesmo tempo, vem estabelecendo laços cada vez mais extensos com a Rússia. Uma estratégia que recoloca a Alemanha no epicentro da luta pela hegemonia dentro de toda a Europa, ofusca o papel da França e desafia o americanismo da Grã Bretanha.
Nos próximos anos, não é impossível que Alemanha e Rússia busquem uma aproximação mais estreita, uma vez que a Rússia é a maior fornecedora de energia da Alemanha e de toda a Europa, além de ser a segunda maior potência atômica do mundo. E a Alemanha tem condições de fornecer à Rússia a tecnologia e os capitais de que necessita para recuperar o dinamismo econômico indispensável à uma grande potência. Esta aproximação afetará radicalmente o futuro da União Européia e de suas relações com os Estados Unidos. Não é improvável que traga de volta a competição geopolítica dos Estados europeus que foram os fundadores do atual sistema mundial.

E a atual crise econômica na Europa? O sr. acha que o euro sobreviverá?
A atual crise econômica européia não é apenas financeira nem se restringe à insolvência de alguns Estados de menor importância econômica dentro da comunidade. Do meu ponto de vista, se trata de uma crise monetária e de insolvência do próprio euro, uma moeda que é emitida por um Banco Central metafísico, que não pertence a nenhum Estado nem está associado a nenhum Tesouro Central. O novo sistema monetário europeu começou a ser construído com o Tratado de Maastricht, em 1992, e culminou com a criação do Euro, em 2002. Baseado na suposição dos dirigentes europeus de que esta nova moeda global conduziria à criação de um poder central capaz de geri-la. Mas até hoje o euro funcionou como uma espécie peculiar de moeda semi-privada e inconclusa, sendo aceita com base na crença privada e na certeza pública de que o BCE e a Alemanha cobririam todas as dívidas emitidas pelos 16 Estados membros da eurozona. Como ocorreu até 2008, permitindo que todos estes países praticassem taxas de juros quase iguais às da Alemanha, apesar da sua imensa desigualdade de poder e riqueza. Esta situação mudou depois do colapso financeiro de 2008, quando a primeira-ministra alemã, Ângela Merkel, estabeleceu o novo princípio de que cada país europeu teria que ser responsável, a partir daquele momento, pelos seus próprios bancos e pela cobertura de suas dividas soberanas. A consequência imediata da nova posição alemã foi a crise de insolvência de alguns governos da Europa Central, no ano de 2009, contornada pela intervenção do FMI. No início de 2010, entretanto, a denúncia do novo governo socialista da Grécia, de que o déficit orçamentário grego do ano anterior havia sido maior do que o publicado inicialmente, serviu como estopim de uma nova crise. Essa crise foi magnificada pelo veto alemão, durante seis meses, a qualquer tipo de ajuda comunitária ao governo grego. Até o momento em que a situação da Grécia ameaçou se estender a outros países endividados e acabou atingindo a própria credibilidade do euro. Isso obrigou a Alemanha a aceitar a aprovação apressada do Fundo Europeu de Estabilização Financeira, com capacidade anual de mobilização de até 750 bilhões de euros. Valor suficiente para contornar a crise imediata, mas incapaz de reverter a desmoralização do sistema monetário europeu, que foi criado em 2002, sob a tutela alemã. Para corrigir esta "falha de fabricação" do euro, a França propôs a criação de um governo econômico europeu, que não foi aceito pela Alemanha. O governo alemão, por sua vez, propõe, sem o apoio francês, a criação de um Fundo Monetário Europeu, para exercer o controle rigoroso da disciplina fiscal da eurozona, com o poder de expulsão dos faltosos. O impasse permanece, mas, assim mesmo, no curto prazo, se impôs a posição alemã, favorável a um ajuste fiscal draconiano de todos os países incorporados à zona do euro. Como o ajuste está sendo aplicado em economias que já estão estagnadas e com altas taxas de desemprego, é como colocar gasolina na fogueira e apostar numa profunda e prolongada recessão como fizeram os EUA no início da crise da década de 1930. Mas nada disto resolverá o problema da insolvência do euro, porque a moeda europeia só terá valor efetivo no momento em que for lastreada por um poder e por um tesouro central capazes de assumir a responsabilidade permanente pela sua sustentação, com base na sua capacidade de tributação e endividamento. Se isto não acontecer, e se os pequenos estados europeus não aceitarem a condição de províncias fiscais da Alemanha, o sistema monetário europeu e o próprio euro_ estão com seus dias contados.

Como o sr. avalia a aproximação entre EUA e Rússia?
Qualquer discussão sobre o futuro desta relação entre EUA e Rússia tem que partir do fato que os EUA seguirão sendo o pivot militar da Europa por muito tempo. Pelo menos enquanto mantiverem o controle das forças da Otan e dos arsenais atômicos da Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e Turquia. Neste sentido, a iniciativa ainda está nas mãos dos EUA. E os EUA têm pelo menos duas grandes alternativas estratégias possíveis com relação a como se conduzir com a Rússia. A primeira alternativa é manter a estratégia clássica, definida por Alfred Mackinder, no final do século 19. A mesma estratégia que foi seguida pela Grã-Bretanha, durante o século 19, e que foi mantida pelos EUA, depois do fim da Segunda Guerra Mundial: cercar e Rússia e impedir de todas as maneiras a sua aproximação da Alemanha. Esta foi de novo a opção dos EUA, depois do fim da guerra fria, com a incorporação militar da Europa Central à Otan e o estabelecimento de bases militares americanas nos territórios da Ásia Central, como forma de apoio às guerras do Iraque e do Afeganistão. Mas existe a possibilidade de uma segunda alternativa, mais inovadora e ousada, que poderia redesenhar o mapa geopolítico da Europa e do mundo, com efeitos imediatos sobre a geopolítica da Ásia Central e do Oriente Médio. Nesse caso, os EUA promoverão uma acordo de médio prazo de pacificação da fronteira russa, junto com uma acomodação negociada com o Irã, envolvendo o apoio da Rússia e a simpatia implícita da Alemanha. Sendo assim, a Rússia daria uma contribuição decisiva para a estabilização da Ásia Central e do Oriente Médio. Neste caso, através de uma negociação envolvendo o Irã e a Turquia, com vistas à construção de um novo equilíbrio de poder regional. Em troca disto, a Rússia teria o apoio norte-americano para retomar sua zona de influencia, e reconstruir sua hegemonia nos territórios perdidos depois da guerra fria. Desde que fosse sem o uso das armas, pelo caminho do mercado e das pressões diplomáticas, como lhes foi permitido e aconteceu com a Alemanha e o Japão, a partir da década de 1950. Esta aliança estratégica com a Rússia ajudaria a bloquear a expansão chinesa, e envolveria o apoio econômico americano ao desenvolvimento do capitalismo russo, com vistas à sua superação do seu viés atual, de natureza primário-exportadora. Mas não há que esquecer que Roosevelt tentou levar à frente uma estratégia parecida de incorporação da URSS, em 1945. Mas sua proposta foi atropelada pela sua morte e pela estratégia desenhada por Churchill e Truman, que levou à guerra fria. De novo, o projeto de Barack Obama pode revolucionar a geopolítica mundial, mas também pode ser atropelado pelas mudanças presidenciais que ocorrerão nos EUA e na Rússia, no ano de 2012. Mas, antes disso, o grande jogo de Barack Obama pode escapar-lhe ao controle, porque os EUA podem não conseguir conter ou controlar todas as forças sociais e políticas despertas, ou estimuladas, por esta gigantesca mudança geopolítica, dentro de cada um dos países envolvidos, na Ásia Central, no Oriente Médio e no Norte da África.

As crises capitalistas têm muitas vezes desaguado em guerras de grandes proporções. O sr. enxerga essa possibilidade?
Acho que devem multiplicar-se os conflitos localizados dentro do sistema mundial, envolvendo sempre os EUA, de uma forma ou outra. Mas não vejo no horizonte a possibilidade de uma grande guerra hegemônica do tipo das duas grandes guerras mundiais do século 20.

A América Latina poderá deixar sua condição tradicional de periferia exportadora para as grandes potências?
Na segunda década do século 21, depois de ultrapassados os efeitos imediatos da crise de 2008, o mais provável é que a América do Sul se mantenha na sua condição tradicional de periferia econômica exportadora. Mesmo quando se ampliem e diversifiquem seus mercados na direção da Ásia e da China. Para mudar essa rota, seria necessário uma decisão de Estado e uma capacidade coletiva de manter em pé o projeto integracionista, independentemente dos conflitos e divergências locais e das próprias mudanças futuras de governo. Além disso, seria preciso levar à frente a integração da infraestrutura física energética do continente e desenvolver cada vez mais o seu mercado interno, com a redução da sua dependência macroeconômica às flutuações dos mercados compradores e dos preços internacionais. Nesse ponto, não existe meio termo: os países dependentes da exportação de produtos primários, mesmo no caso do petróleo, serão sempre países periféricos, incapazes de comandar sua própria política econômica, e incapazes de comandar sua participação soberana na economia mundial. De qualquer maneira, o futuro da América do Sul será cada vez mais dependente das escolhas e decisões tomadas pelo Brasil. E o tempo urge porque se o Brasil seguir submetido aos desígnios dos mercados internacionais se transformará, inevitavelmente, numa economia exportadora de alta intensidade, de petróleo, alimentos e commodities, uma espécie de periferia de luxo das grandes potências compradoras do mundo. Como foram, no seu devido tempo, a Austrália e Argentina ou o Canadá, mesmo depois de industrializado. E se isto acontecer, o Brasil estará condenando o resto da América do Sul à sua condição histórica secular, de periferia primário-exportadora da economia mundial.

Como deverá evoluir a relação do Brasil com os EUA?
Hoje, o Brasil é o único país da América do Sul que tem capacidade e possibilidade de construir um caminho novo dentro do continente, combinando indústrias de alto valor agregado com a produção de alimentos e commodities de alta produtividade, sendo, ao mesmo tempo, auto-suficiente do ponto de vista energético. Entretanto, esta não é uma escolha puramente técnica ou econômica. Ela supõe uma decisão preliminar, de natureza política e estratégica, sobre os objetivos do Estado e da inserção internacional do Brasil. E, neste caso, existem duas alternativas para o Brasil: manter-se como sócio preferencial dos Estados Unidos na administração da sua hegemonia continental, ou lutar para aumentar sua capacidade de decisão estratégica autônoma, no campo da economia e da sua própria segurança, através de uma política hábil e determinada de complementaridade e competitividade crescente com os Estados Unidos, envolvendo também as demais potências do sistema mundial, no fortalecimento da sua relação de liderança e solidariedade com os países da América do Sul. Seja como for, é absolutamente certo que as escolhas brasileiras serão decisivas para o futuro da América do Sul.
Por outro lado, entre as chamadas potencias emergentes ou continentais, como a China, Índia e, talvez, Turquia, Irã e Indonésia, o Brasil é o país com maior potencial de expansão pacífica, dentro da sua própria região. Com a diferença essencial de que seu principal competidor na América do Sul são os próprios Estados Unidos. Mas, ao mesmo tempo, a expansão do Brasil, dentro e fora da América do Sul, contou até aqui com a vantagem de ser uma potência desarmada, porque de fato está situado na zona de proteção atômica incondicional dos Estados Unidos. Além disso, Brasil também usufruiu da condição de país ou nação formada dentro da mesma matriz cultural e civilizatória que os EUA. Mas chegará o momento em que o Brasil terá que tomar algumas decisões fundamentais com relação a estes dois pontos que favoreceram até aqui a expansão da sua influencia internacional. Em primeiro lugar, terá que definir o seu próprio projeto mundial e sua especificidade com relação aos valores, diagnósticos, e posições dos europeus e norte-americanos, com relação aos grandes temas e conflitos da agenda internacional. E, em seguida, o Brasil terá que decidir se aceita ou não a condição militar de aliado estratégico dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da França, com direito de acesso à tecnologia de ponta como no caso da Turquia ou de Israel, por exemplo mas mantendo-se na zona de influência, proteção e decisão estratégica e militar dos Estados Unidos e de seus principais aliados europeus. Ou seja, o Brasil terá que decidir o seu lugar no mundo, a partir do seu pertencimento originário à tradição européia e cristã, que o distingue e distancia inevitavelmente, das outras tradições e potências continentais que deverão estar competindo com os Estados Unidos e entre si pela liderança mundial nas próximas décadas. E terá que decidir se quer ou não, ter algum dia a capacidade de sustentar suas posições fora da América do Sul com seu próprio poder militar.

Qual a importância do Mercosul?
O Brasil controla atualmente metade da população e do produto sul-americano, é hoje o player regional mais importante no tabuleiro geopolítico da América do Sul. Vem tendo uma presença cada vez mais afirmativa, mesmo na América Central e no Caribe. O Brasil aceitou o comando da missão de paz das Nações Unidas, no Haiti, tomou uma posição decidida a favor da reintegração de Cuba na comunidade americana e tem defendido, em todos os foros internacionais, o fim do bloqueio econômico à Cuba. Ao mesmo tempo, tem exercido uma razoável influência ideológica sobre alguns governos de esquerda da América Central e tomou uma posição rápida e dura frente ao golpe de Estado militar de Honduras, em junho de 2009, e na tensão com os Estados Unidos, com respeito à coordenação da ajuda ao Haiti, no terremoto de Porto Príncipe, no início de 2010. Mas apesar do seu maior ativismo diplomático, o Brasil ainda não tem possibilidade de competir ou questionar o poder americano, no seu mar interior caribenho. Na América do Sul, entretanto, o Brasil tem demonstrado, nestes últimos anos, vontade e decisão de defender seus interesses e o seu próprio projeto de segurança e de integração econômica do continente. Com a expansão do Mercosul, a criação da Unasul e do Conselho Sul-Americano de Defesa, o Brasil contribuiu para o engavetamento do projeto da Alca e reduziu a importância do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e da Junta Interamericana de Defesa, que contam com o aval dos Estados Unidos. Além disto, o Brasil teve uma participação ativa e pacificadora nos conflitos entre Equador e Colômbia e entre Colômbia e Venezuela. E fez uma intervenção discreta e eficiente para impedir que o conflito interno da Bolívia se transformasse numa guerra de secessão territorial na sua própria fronteira e bem no coração da América do Sul. Além disto, em 2009, o Brasil assinou um acordo estratégico militar com a França, que deverá alterar a relação do Brasil com os EUA e transformar o país, em alguns anos mais, na maior potência naval da América do Sul, com capacidade simultânea de construir submarinos convencionais e atômicos e de produzir os seus próprios caças bombardeiros. Essa decisão não caracteriza uma corrida armamentista entre o Brasil e seus vizinhos do continente nem, muito menos, com os EUA. Mas sinaliza uma mudança da posição internacional brasileira e uma decisão brasileira de aumentar sua capacidade político-militar de veto, dentro da América do Sul, com relação às posições norte-americanas..

Nos momentos de crise forte não faltam os que afirmam vislumbrar a "crise final do capitalismo". Immanuel Wallerstein, por exemplo, acha que "a civilização capitalista chegou ao outono de sua existência". Por que o sr. discorda dessa tese?
Acho que já expus meu ponto de vista nas respostas anteriores. Mas podemos voltar ao assunto de forma mais direta e clara. É verdade que na crise dos anos 70 do século passado falou-se muito de fim da hegemonia americana e, inclusive, em alguns casos, em crise estrutural ou final do próprio capitalismo. E, no entanto, hoje está claro que a crise dos anos 70 não enfraqueceu o poder americano. Muito pelo contrário, transformou-se no ponto de partida de uma escalada no processo de acumulação vitoriosa do poder e da riqueza dos EUA, em escala planetária. E, agora, de novo, neste início do século 21, voltou-se a falar de uma crise terminal do poder americano e do capitalismo. Mas não existem evidências convincentes de que este colapso esteja ocorrendo ou vá ocorrer nos próximos tempos. A crise hipotecária e financeira americana, de 2007/2008 não se transformou numa crise econômica global. E não é provável que ela possa repetir, a médio prazo, a crise da década de 1930 ou, mesmo, a da década de 1970. O fracasso político norte-americano no Iraque não diminuiu o poder militar dos Estados Unidos, que segue sendo muito superior ao de todas as demais potências juntas. A economia norte-americana segue sendo a mais poderosa do mundo e mantém sua capacidade de inovação. Os Estados Unidos seguem controlando cerca de 70% de toda a informação produzida e distribuída ao redor do mundo. A moeda internacional segue sendo o dólar. O déficit externo não ameaça os Estados Unidos neste novo padrão monetário internacional dólar-flexível. E os Estados Unidos não parecem estar sem os "os meios e a vontade de continuar conduzindo o sistema de Estados na direção que seja percebida como expandindo não apenas o seu poder, mas o poder coletivo dos grupos dominantes do sistema", como pensava Giovanni Arrighi. As dificuldades políticas e econômicas dos Estados Unidos, no final da primeira década do século 21, poderão se prolongar e aprofundar. Mas, do nosso ponto de vista, com certeza não se trata do fim do poder americano nem, muito menos, da economia capitalista.
De qualquer maneira, o problema de fundo de todas estas profecias terminais não está na sua leitura imediata da conjuntura internacional deste início do século 21. Seu ponto fraco está na confusão que fazem entre planos e tempos históricos diferentes. O historiador francês Fernand Braudel falava da existência de pelo menos três tempos históricos diferentes: o tempo breve, da vida política imediata, do tempo cíclico, da vida econômica, e da longa duração, das grandes estruturas históricas. Sem distinguir estes planos e estes tempos diferentes pode-se confundir, com facilidade, o fim de um ciclo normal da economia capitalista com uma crise estrutural ou terminal do próprio capitalismo. E pode se considerar catastrófico um declínio relativo de um país que tenha acumulado uma quantidade excepcional poder, após uma guerra vitoriosa, como foi o caso dos Estados Unidos, depois de 1945, e depois de 1991. A partir deste momento vitorioso, é inevitável que a potência ganhadora perca posições relativas dentro da hierarquia mundial do poder e da riqueza, na medida em que avança a reconstrução dos Estados e das demais economias que foram derrotadas ou foram destruídas pela guerra. Nestes períodos de recuperação, a velocidade da reconstrução física e militar e do crescimento econômico dos derrotados ou destruídos tende ser maior do que o da potência líder. O que não se percebe, muitas vezes, é que a reconstrução e aceleração do crescimento destes países é, ao mesmo tempo, indispensável, para a acumulação de poder e riqueza da potência que está em "declínio relativo". E que esta potência em declínio é indispensável para o ascenso relativo das outras potências que estão se aproximando ou ultrapassando a potência líder. Por isso, se pode falar de um "declínio relativo" do poder americano, com relação à China, como já se falou do declínio do poder econômico norte-americano, com relação ao Japão e à Alemanha, na década de 1970. Mas esse declínio relativo dos Estados Unidos não significa, necessariamente, um colapso do seu poder econômico e da sua supremacia mundial. De qualquer maneira, por trás da visão de Wallerstein, como da minha própria, existem teorias diferentes sobre a origem e a dinâmica do sistema mundial. Wallerstein e Arrighi vêem a história mundial como uma sucessão de ciclos hegemônicos ou de acumulação de capital. Enquanto eu vejo este mesmo sistema como um "universo" em expansão contínua. Onde todos os Estados que lutam pelo poder global, em particular as grandes potências, estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra, sem perder sua preeminência hierárquica dentro do sistema. A visão deles está mais próxima da biologia e dos seus ciclos vitais. Enquanto a minha está mais próxima da física termodinâmica e da teoria das estruturas dissipativas.

Qual sua avaliação da vista de Obama ao Brasil?
Teria sido uma visita irrelevante, quase um passeio de fim de semana da família Obama, se não tivesse sido usado para fazer uma demonstração imperial do poder americano. Ao encenar uma decisão de guerra, que já tinha sido tomada e que foi deixada para ser anunciada em território brasileiro, antes de um almoço festivo do Itamaraty. Deixando nosso país numa posição rebaixada e colocando nossos governantes na posição de pró-cônsules de uma província imperial, na hora em que faziam o ridículo de anunciar um novo "tratamento entre iguais". Faltou um mínimo de altivez aos nossos governantes e ex-governantes presentes na confraternização do Itamaraty. Para nem falar das autoridades cariocas que se comportaram como se fosse apenas tietes de auditório.