segunda-feira, 11 de abril de 2011

UM ENCONTRO INTERESSANTE

UM ENCONTRO INTERESSANTE

O tempo estava seco e quente. O forte sol escaldador era um convite para estar em contato com a água: numa piscina, no mar ou num rio. Eu passava alguns dias no sítio de minha irmã, resolvi caminhar por dentro de um riacho ou simplesmente beirar-lhe, conforme a acessibilidade. Nos trechos de areia, onde era raso, eu andava por dentro d’água, já nos trechos empoçados, margeava. Aproveitava para admirar as árvores, os pássaros, os peixes. Fui caminhando sem pressa, sem destino certo, até onde houvesse córrego, ou cansasse. Assim, sem perceber, fui parar num sítio de um vizinho que ficava há quatro quilômetros da casa de minha irmã.
Estava lá descansando um pouco, à sombra de uma árvore centenária, chamada de fruta cavalo, quando surgiu de repente um velho. Ele estava montado num corcel negro. Usava um traje antigo, terno escuro, chapéu, camisa amarela e sapato preto.
O fato curioso era que estava montado em pelo, somente com uma corda escura, sem ao menos um cabresto.
Logo o reconheci. Esse ancião foi companheiro de mocidade do meu pai. Casara-se com uma das filhas dos portugueses que tinham um sítio vizinho ao do meu avô. Porém, não o via há muito tempo. Mais ou menos uns dez anos.
Entretanto, não estranhei, eu estava caminhando em sua propriedade, fiquei até feliz em reencontrá-lo depois de muito tempo, Também ia distrair-me batendo um papo.
O velho, Somindo Berti, como era chamado, já veio falando de longe:
- Que prazer encontrar o filho de meu grande amigo Levi Vando!
- Também o meu! Quanto tempo, hem!
Na verdade não gostei muito dele lembrar o apelido do meu pai do tempo do exército. Meu pai chamava-se Elvis Elvando, um nome até clássico, mas era chamado de Levi Vando ou Levitando, por ser magro. Entretanto senti um calafrio, pois, levitando, parecia o seu Somindo, montado naquele cavalo.
- Acredito que você pode ser a pessoa certa de que estou precisando.
Após os cumprimentos, começamos falar sobre as famílias, logo ele contou dos filhos, da herança do sítio, que ia deixar para os quatro filhos. Disse-me ainda que recebia uma aposentadoria, pequena, mas ajudava; tinha um dinheirinho a juro, uma casinha de aluguel na cidade e outra para morar com a velha Maria Eugênia. Portanto, estava muito bom.
Contou-me que vendera o gado para doar o sítio aos filhos, pois não tinha mais disposição para negócios. Porém seu sonho era que os filhos, bem melhores preparados que ele, donos de algum capital, formassem uma sociedade para criar gado de raça, nelore, por exemplo. Daria pouco trabalho e lucro na certa. Além de transmitir uma boa imagem da propriedade.
- Eu demorei em juntar as terras! Não quero que elas sejam esfaceladas, repartidas de novo! Elas devem permanecer como estão! Disse o velho, gesticulando os braços: - Mas as coisas estão difíceis, a filha quer vender para comprar uma mansão, outro quer montar um grande escritório de Advocacia, outra filha falou em comprar um carrão importado. Apenas um quer sacrificar-se para continuar com o sítio. Mantê-lo intocável, do mesmo tamanho, sem vender um alqueire sequer. Também, o Jacinto tem dinheiro! Na verdade, todos estão bem de vida, não precisam desse dinheiro.
Essa família era uma mistura de português com italiano, eram muito presunçosos e gostavam de contar vantagens, eram gargantas mesmo como dizia meu pai. Por isso não era surpresa a conversa do velho.
- O senhor falou com algum de seus filhos sobre isso?
- Não, porém já deixei escapar minha opinião algumas vezes. Nem quero vê-los nestes dias! Por isso, estou cavalgando! – disse o velho.
- É provável que eu fique com minha velha, quietinhos na casinha que minha filha, Natividade, construiu lá perto do casarão.
Por alguns segundos ele ficou pensativo.
- Que felicidade encontrá-lo aqui! Recordo-me que você e o Paulo foram bons amigos na infância e na adolescência... O Paulo, meu filho de Americana, pode assumir uma liderança. Ele é também maleável, e respeita-o muito, pois vocês também estudaram juntos. Você deve procurá-lo ainda hoje. Eles estão lá reunidos, resolvendo este assunto. Aproveita e toma uma cerveja gelada e poderá dar bons conselhos, você já viveu a experiência da fazenda do compadre. O Paulinho vai ouvi-lo, aí já serão dois a favor, então a metade, pois o Jacinto conhece muito bem o meu sonho da velhice. Com uma boa conversa poderá convencer mais um, confio no seu preparo e na sua cultura.
Depois de um quarto de hora de conversa, o velho saiu troteando no seu negro cavalo e sumiu como um fantasma, quase levitando, por detrás do verdejante arvoredo que circundava o riacho.
Eu fiquei pensativo, que homem estranho... Eu, de fato, havia jogado algumas trucadas com ele, mas há quanto tempo não via aquela família. Somente fui ao casamento de um ou dois dos irmãos, nem conhecia os cônjuges. Por que o velho me escolhera? Também... Que idéia xeretear no riacho que passava pela sua propriedade.
No fundo era um desafio, eu me sentia importante, aquele velho surgira, não sei da onde, lançara-me uma tarefa. Eu não podia desapontar meu falecido pai que decerto estaria ao meu lado.
Às vinte horas parti para casa dos Bertis, no caminho ia matutando, por onde começava? Será que o seu Somindo estaria por lá? A sensação era negativa. Não? Por que não? Será que ele não se intrometeria como me dissera?
Chegando á casa dos Bertis, fui muito bem recebido pelo Doutor Paulo, que foi encontrar-me ao portão:
- Seja bem vindo! Acho que chegou em boa hora, estamos assando uma carninha. Temos cerveja e estamos discutindo um assunto importante. Como você participou do processo de venda da fazenda do seu pai, poderá usar de sua experiência para trocarmos idéias.
- Então, Dr. Paulo, hoje, tomei a liberdade de fazer uma saudável caminhada pelo riacho que corta o sítio pertencente a sua família. Aquele que foi do Maranda. Está lindo! Cheio de árvores frondosas! Isso me incentivou a vê-los.
- Legal! Sabe que, após o falecimento de minha mãe, meu pai passeava a cavalo todos os dias naquelas terras. Algo o agradava tanto, parecia que encontrava energias em boas recordações para continuar vivendo.
Nisso chegou sua irmã com a chave para abrir o cadeado da porteira.
- Eh! Foi bom em quanto durou, mas no final...
Os dois entreolharam-se, fitando-se, como estivessem censurando um ao outro.
Ela exclamou de forma estranha, depois suspendeu a frase, como quem se arrependesse de meter a colher na conversa.
Se não fosse a penumbra da noite e eu não estivesse ainda do outro lado da porteira, já que estavam com dificuldades para abri-la. Teriam notado meus cabelos arrepiados, meu peito estremecendo, minhas pernas bambas, cambaleando.
Coincidências estranhas naquela beira de riacho. Os Bertis segredavam alguma coisa, como sentissem vergonha de falar.
Ele deixara-me muito à vontade. Apesar disso, eu estava gaguejando, troquei nomes, errei até o nome de minha falecida mãe, quando me reapresentei aos irmãos e às respectivas esposas e maridos.
Eu sentia certa insegurança, e se de repente eu falar do velho? Imaginou eu perguntar: - Seu pai não vem provar o churrasco?
Logo pude observar que embora tivessem reformado o casarão antigo de madeira, estava um bagaço, as benfeitorias também estavam caindo aos pedaços. Mangueira, tronco, paiol e quintal, quase apodrecendo, pois o churrasco era numa espécie de garagem ou uma antiga tulha, transformada em um barracão, bem próxima à mangueira. Pelo que pude notar não havia um bezerro sequer.
Dialogando com os quatro irmãos, como me falara o velho, logo percebi que o assunto era mesmo a propriedade, o que fazer da fazendinha.
Devagar tomei conhecimento da situação. Logo tive oportunidade de tomar uma gelada só com o Paulinho, reservado, num canto, e percebi que ele também não desejava desfazer da propriedade. Queria manter a tradição, um bem histórico, parte vinha dos avós, e parte seu pai adquiri-la com muito suor, valia a pena preservar, mas como?
Evitando-me envolver num assunto de família, eu, aos poucos, fui fazendo perguntas e, entre goles de cerveja, dava algum palpitinho, sempre objetivando transmitir o pedido do velho.
- Pelos meus longos anos de vida, já deu para eu notar que os velhos são apegados à terra. Meu pai também era assim. Acredito que o seu, igualmente, prefira que o sítio permaneça inalterado. Tudo como se fosse uma grande empresa, pertencente a uma sociedade de filhos.
Eu nem percebera que estava falando no presente.
Continuei:
- Preservar uma propriedade é sempre nosso sonho. Vocês tiveram uma infância feliz aqui, tiveram também uma boa adolescência. Em todo o tempo seu pai tirou sustento da terra. Parece que o sinto aconselhando-me a investir na propriedade, é uma inspiração que não sei da onde vem.
Falei de algumas experiências que eu tinha visto, tanto na prática como em leituras. Eu lera várias vezes sobre esse assunto, pois eu ainda era apaixonado por fazendas.
- O gado nelore, por exemplo, dará pouca mão de obra, um só caseiro tomará conta. Dará alguma despesa para reformar a mangueira, para aquisição, mas logo virá o lucro. Mas o mais importante será preservar este bem tradicional da família.
De repente escapou uma pergunta:
- Vocês têm cavalos? Tem montado algumas vezes?
- Sim, ainda temos alguns, inclusive o negro que meu pai comprou daquele seu parente criador de cavalos. Mas quase não sabemos montar. Meu pai, sim! Em qualquer ocasião foi um bom cavaleiro. Chegou a ser domador! Na raia também gostava de montar seus cavalos quando corriam parelhas.
Como percebi que o Paulinho estava animado, portanto faltava tentar convencer mais uma herdeira para alcançar a maioria.
Logo surgiu essa oportunidade, pois a terceira filha viera me fazer perguntas, e logo admitiu a possibilidade de manter o sítio. Era um sonho de todos. Aceitava até investir no mesmo, embora repetisse que: - Transformá-lo em dinheiro, fazia até cócegas na mão.
Eu falava com tanta desenvoltura, repetia o discurso que ouvira na beira do rio. Usava o presente:
- Sei como seu pai deve sentir-se! Ele era apegado a terra! O dinheiro nem sempre é o mais importante! Imagine! Todos os fins de semana vocês poderão vir até aqui e olhar aquele baita gadão! Que grande grau de satisfação para todos os irmãos! Vocês constantemente vão dizer: “Ai se meu pai pudesse estar aqui.”
Depois de ter testado a reação dos amigos com palavras, eu tive quase certeza de que podia tomar uma posição mais segura.
Após três ou quatro horas de conversa que mantive com aquela família, senti-me importante, um conselheiro vindo de outro mundo, decisivo, senhor do dever cumprido.
Saí acreditando que tinha atingido os meus objetivos, conforme pedira com tanto empenho, aquele senhor ancião, amigo de meu pai, lá na beira do riacho, embora levitando. Pensei com meus botões, depois estremeci de medo. E se o tal velho me cerca aqui na estrada? Nossa! Já pensou atropelar esse quase sobre natural! Aí o carro quase foi mesmo parar no bueiro, tamanho era meu medo, embora eu levasse na gozação.
No dia seguinte eu ainda tive ousadia, voltei à beira do riacho, estava curioso. Eu de fato fora muito corajoso. Mas, como já esperava, o velho tinha acabado sua missão e havia alcançado a paz de que tanto precisava.

José Benedito Ferraz da Silveira

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