quinta-feira, 30 de junho de 2011

Sobrevida de segunda

Anne Applebaum

Na mais notável das muitas fotos feitas na celebração de gala em que comemorou o seu 80° aniversário, Mikhail Gorbachev parece mais baixo e mais gordo do que no auge da carreira, quando era uma das pessoas mais importantes do mundo. Sua expressão é inescrutável, não passando de um meio sorriso; sua aparência também parece pecar pela falta de asseio, e talvez ele estivesse um pouco inseguro de si. É claro que tais impressões podem ter sido exageradas pelo fato de, na foto em questão, o antigo secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética estar de braços dados com Sharon Stone. A atriz usa um sedoso vestido cor de champagne e batom de um vermelho vivo. Sorri abertamente. De salto alto, ela parece ser mais de 15 cm mais alta que Gorbachev, o que sem dúvida diminui sua aura de autoridade.
Mas, pensando bem, faz muito tempo que Gorbachev deixou de ter a mesma aura de autoridade. Na verdade, todos os aspectos daquela extravagante festa de aniversário gritavam “celebridades de segundo escalão”. Sharon não emplaca um filme de sucesso há algum tempo; o mesmo pode ser dito de Kevin Spacey, coanfitrião do evento ao dela. Entre os presentes estavam também Goldie Hawn, Arnold Scwarzenegger, Ted Turner, Shirley Bassey e – sinto informar – Lech Walesa. O baile de gala era ostensivamente um evento para arrecadar fundos para a Fundação Raissa Gorbachev, que ajuda a financiar o tratamento de crianças com câncer. Mas a noite serviu principalmente para sublinhar quanto é estranho o destino de Gorbachev. Ali estava o homem que lançou a glasnot e a perestroika, presidiu o desmantelamento do império soviético e depois o da própria União Soviética, é um dos estadistas fundadores da Rússia moderna – e, ainda assim, sua festa de aniversário foi realizada no Royal Albert Hall, em Londres, entre convidados que mal o conheciam.
Isso não foi um acidente; 20 anos após a dissolução da URSS, a Rússia se mostra ambivalente (na melhor das hipóteses) em relação a Gorbachev. Longe de ser celebrado como herói, ele é comumente lembrado como um líder desastroso – isso quando chega a ser lembrado. É verdade que criou espaço para uma nova era de abertura anunciando liberdade antes impensáveis na década de 80, mas na Rússia ele também é considerado o responsável pelo colapso econômico dos anos 90. Da mesma maneira, a maioria dos russos não anseia por agradecer a ele pelo fim do império soviético. Ao contrário: o atual primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, descreveu o desmantelamento da União Soviética como “a maior catástrofe geopolítica” do século 20. Uma pesquisa de opinião divulgada em março, na época do aniversário, mostrava que cerca de 20% dos russos sentiam uma hostilidade ativa em relação a Gorbachev, 47% eram indiferentes a ele e apenas 5% diziam admirá-lo. E esse resultado foi uma melhoria: outra pesquisa, realizada em 2005, revelou que ele inspirava hostilidade em 45% dos russos. Na Rússia atual, a palavra perestroika recebe quase invariavelmente conotações negativas.
Em Londres e Washington, a reputação de Gorbachev é obviamente mais positiva. Ele é tratado com carinho – foi convidado para o funeral de Ronald Reagan e para a festa de 80 anos de George Bush pai – e costuma ser celebrado como um “símbolo” da paz e do bem-vindo fim da Guerra Fria. Mas ele também recebe elogios insossos e às vezes até inapropriados. Em sua festa de aniversário, Paul Anka cantou em dueto com um roqueiro da era soviética. O refrão: “One Day we´ll recall/ He was changing the world for us all” (“Um dia lembraremos/ que ele estava mudando o mundo para todos nós”). Então Sharon o presenteou com uma pergunta retórica: “Onde estaria a Rússia se não estivesse colhendo os frutos benefícios da democracia livre?” Eu gostaria de ter estado presente para ver a expressão de constrangimento dos convidados no Royal Albert Hall. Afinal, a Rússia não colheu os frutos benéficos da livre democracia, como bem sabiam todos os russos ali presentes. Até o próprio Gorbachev descreveu recentemente a democracia russa como uma mentira: “Temos instituições, mas elas não funcionam. Temos leis, mas elas precisam de policiamento para serem cumpridas”.
É claro que não se pode culpar Gorbachev pela falta de transparência política no Kremlin de hoje, nem pela debilidade dos partidos políticos, pelo retorno da KGB enquanto fonte de influência e poder e nem pela violência que as autoridades russas empregam intermitentemente contra todo tipo de dissidente. E nem foram de responsabilidade dele as verdadeiras causas do colapso econômico dos anos 90 – o baixo preço do petróleo, 70 anos de políticas econômicas equivocadas e a insaciável ganância da elite russa educada nos sistema soviético. Boris Yeltsin, o primeiro presidente russo, carrega uma parcela maior da culpa pela corrupção na economia russa, e Putin é sem dúvida o principal responsável pelo estado e estagnação da política russa.
Na verdade, Gorbachev não pretendia que as coisas acabassem da maneira como acabaram. Mas até aí ele nunca se propôs a ser um dos pais fundadores da Rússia moderna. Era um reformista, não um revolucionário; quando se tornou líder do Partido Comunista Soviético, em março de 1985, sua intenção era revitalizar a União Soviética, não desfazê-la. Ele sabia que o sistema estatal estava estagnado. Mas não entendeu por quê. Em vez e abolir o planejamento estatal ou anunciar uma reforma nos preços, Gorbachev anunciou uma drástica campanha de combate ao álcool: talvez, se bebessem menos, os trabalhadores produzissem mais. Dois meses depois de assumir o poder, ele impôs restrições à venda de álcool, aumentou a idade mínima para o consumo de bebidas alcoólicas e ordenou cortes na produção das mesmas. O resultado: grandes perdas para o orçamento soviético e uma dramática escassez de certos produtos, como o açúcar, que a população começou a usar para produzir vodca caseira ilegal.
Foi somente depois do fracasso da campanha – e somente depois do desastre nuclear de Chernobyl tê-lo obrigado a se dar conta dos perigos do sigilo numa sociedade industrial avançada – que Gorbachev empreendeu sua segunda tentativa de reforma. Como a campanha contra o álcool, a glasnot tinha o intuito original de promover a eficiência econômica. Gorbachev acreditava que um debate aberto dos problemas da União Soviética levaria ao fortalecimento do comunismo. Ele sem dúvida nunca quis que sua política alterasse o sistema econômico da URSS de modo profundo. Ao contrário. Pouco depois de assumir o poder, ele disse a um grupo de economistas do partido: “Muitos de vocês enxergam como solução para nossos problemas um apelo aos mecanismos de mercado como substitutos do planejamento direto. Alguns de vocês vêem o mercado como um bote salva-vidas para suas economias. Mas, camaradas, vocês não devem pensar nos botes salva-vidas, e sim no navio, e este navio é o socialismo.
É claro que Gorbachev acabaria mudando suas ideias, tanto na economia quanto em muitas outras áreas. De fato, esse padrão se repetiria muitas vezes. Determinado a salvar o planejamento central, ele disse às pessoas que falassem abertamente a respeito desse sistema econômico – e, como resultado, a população concluiu que ele não funcionava. Determinado a salvar o comunismo, ele deixou que as pessoas criticassem esse sistema político – e, como resultado, elas decidiram que preferiam o capitalismo. Determinado a salvar o império soviético, ele concedeu liberdade aos europeus orientais – que usaram essa liberdade para se libertar das garras do império tão logo puderam fazê-lo. Ele nunca compreendeu a profundidade do cinismo em seu próprio país e nem a profundidade do anticomunismo nos Estados satélites soviéticos. Nunca compreendeu quanto as burocracias centrais estavam podres e nem quanto os burocratas tinham se tornado amorais. Ele sempre pareceu surpreendido pelas conseqüências de seus atos. No fim, em vez de fazer história, Gorbachev se viu correndo para alcançá-la.
Na verdade, todas as suas decisões mais radicais e importantes foram aquelas que ele não tomou. Ele não ordenou aos alemães orientais que atirassem contra as pessoas que cruzavam o muro de Berlim. Não lançou uma guerra para evitar a deserção dos países bálticos. Não impediu o esfacelamento da União Soviética e nem impediu a ascensão de Yeltsin ao poder. O fim do comunismo poderia sem dúvida ter sido muito mais sangrento e, se houvesse outra pessoa no comando, é possível que as coisas tivessem sido assim. Por sua recusa em recorrer à violência, Gorbachev merece a cafona serenata de Paul Anka.
Mas, por não ter compreendido que estava ocorrendo, Gorbachev deixou de preparar seus compatriotas para as grandes mudanças políticas e econômicas. Ele não ajudou a projetar instituições democráticas e não preparou os alicerces para uma reforma política ordenada. Em vez disso, tentou-se manter no poder até o último instante – para preservar a União Soviética até que fosse tarde demais. Como resultado, não houve para ele sobrevivência política após o colapso da URSS. Depois de deixar o cargo, Gorbachev tentou por três vezes fundar novos partidos políticos. Fracassou em todas elas.
Na política o senso de oportunidade é tudo, como estamos aprendendo novamente este ano com a agitação no Oriente Médio. Se o egípcio Hosni Mubarak tivesse convocado eleições livres um ano atrás, seria lembrado como um estadista magnânimo. Se o líbio Muamar Kadafi tivesse graciosamente abdicado em favor de seu filho Saif al-Islam, ele seria lembrado agora nos brindes feitos em todos os salões europeus. Se o tunisiano Zine al-Abidine Ben Ali tivesse começado a planejar sua aposentadoria um pouco mais cedo, estaria agora vivendo em paz num subúrbio de Túnis e não evitando os mandados de captura da Interpol em algum lugar da Arábia Saudita.
Pela mesma lógica, se Gorbachev tivesse planejado o desmantelamento da União Soviética desde 1988, em vez de aceitar furioso esse destino somente após sua consumação, em 1991, seu aniversário este ano poderia ter sido celebrado por russos agradecidos, em lugar de atrizes americanas balbuciando banalidades. Como também aprenderemos no Oriente Médio, uma transição organizada da ditadura para a democracia conta com dois elementos cruciais: uma elite disposta a abrir mão do poder e uma elite alternativa suficientemente organizada para assumi-lo. Graças em parte à natureza relutante e caótica dos últimos anos de Gorbachev no poder, a Rússia não teve nenhuma das duas coisas.
Pode ser que não houvesse para ele a possibilidade de agir de outra forma. Gorbachev nada sabia da democracia real e conhecia menos ainda a dinâmica do livre mercado. Criado e educado na cultura soviética, ele simplesmente não conseguiu pensar numa saída para aquele sistema. Não evitou a mudança e não atirou nas pessoas que finalmente realizaram essa mudança. Mas, num momento histórico de tamanha importância, a ignorância não serve como desculpa.

Anne Applebaum, colunista do Washignton Post. Escreveu este artigo para foreign Policy.