quinta-feira, 14 de abril de 2011

Comentário sobre Gilberto Freyre

Gilberto raramente fala de igualdade e com a noção de "equilíbrio entre contrários" - essencial em suas interpretações -passa a impressão de aceitar a desigualdade, embora reaja à ideia de desigualdade racial. Sergio mostra que sem a igualdade abstrata, formal, da lei e sem seu exercício prático ancorado na cultura política, não há democracia.

Critica o que Gilberto erige como feito luso-brasileiro de adaptação aos trópicos com a colaboração indígeno-africana: nossa matriz cultural. Mais ainda, Sergio Buarque de Holanda acreditava que a renovação político-cultural viria com a urbanização e o advento das massas de cidadãos reivindicantes. Gilberto, pelo contrário, viu na urbanização e na industrialização a ameaça ao que de melhor havia em nossas tradições culturais.

Não cabem dúvidas que Gilberto Freyre revolucionou a perspectiva de análise da sociedade brasileira, mas o fez como um "revolucionário-conservador", ao estilo que tanto o agradava. Ressaltou características da cultura política de conciliação, saudando-as, o que tanto pode ser lido como visão conservadora da história quanto, à luz até mesmo de experiências recentes, uma das "constantes culturais" que podem nos ser incômodas.

No tópico específico das relações entre as raças e da falada "democracia racial", parece ser mais correto dizer que via mais um equilíbrio entre diversos do que uma "democracia", expressão que usou raramente e mais se referindo a uma eventual convivência harmoniosa entre desiguais do que no sentido corrente da expressão. Cabe acentuar, nesse caso sim, que Gilberto Freyre, apesar dos deslizes costumeiros salpicando uma ou outra frase com expressões "racistas", era profundamente contrário ao afastamento físico e cultural entre as raças. Se pensou contudo em igualdade foi a que seria assegurada pela miscigenação racial e pelo sincretismo cultural. Não concebia, como está se tornando voga hoje em dia, uma afirmação racial que marcasse diferenças entre "raças", a dos brancos e a dos não brancos. A ideologia emergente em nosso meio marca as diferenças e as identidades, para depois pedir igualdade entre elas. Gilberto Freyre propugnava uma névoa entre os matizes da pele e o repúdio de diferenças essenciais.
Com todas essas ressalvas, como explicar a perenidade da obra de Gilberto Freyre? Em outras ocasiões, além de me referir, como nesta conferência, a suas qualidades literárias e aos aspectos inovadores reiterados, fiz menção a que ela tem uma força mítica. Especifico os dois sentidos aos quais caberia o qualificativo. Primeiro, a moda de Lévi-Strauss:
"D'abord chaque mythologie locale, confrontée à une histoire et à un milieu donnés, nous apprend beaucoup sur la société d'où elle provient, expose ses ressorts, éclaire le fonctionnement, le sens et l'origine des croyances et des coutumes dont certaines posaient, parfois depuis des siècles, des probèmes sans solutions. À une condition toutefois: ne jamais se couper des faits. (...) Revenir aux mythes certes; mais sourtout aux pratiques et aux croyances d'une société déterminée qui peuvent seules nous renseigner sur ces relations qualitatives." (Claude Lévi-Strauss, "Histoire de Lynx", in Oeuvres, Paris, Gallimard, 2009, p.1429).
Não será isso que faz Gilberto Freyre depois de estabelecer a relação binária - própria dos mitos - de contrários que se equilibram? Suas análises minuciosas das relações entre as pessoas, seu destrinchar permanente de traços culturais, suas tentativas de delimitar as relações entre o físico, o biológico e o meio ambiente, sempre revisitadas à luz da vivência humana, constituem a força de seus livros, tanto ou mais que suas "visões" encantatórias.

Também noutro sentido, menos usual, há uma força mítica na obra de Gilberto Freyre. Refiro-me ao mito soreliano (de Eugène Sorel) visto como um conjunto de imagens intuídas que desperta sentimentos. Nesse sentido, a sociedade patriarcal, as relações desiguais, mas próximas, entre as raças, o repúdio do racismo como conceito heurístico, a afirmação de uma cultura própria funcionariam como um ponto de fuga que, se não retrata a realidade, faz parte dela. Faz-nos recordar também que não existe uma "realidade" dada.

Nas sociedades, de certa maneira, tudo é processo, ora mais estável, ora se desfazendo, ora se refazendo, mas sempre guiado por distintas visões de futuro.