terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Adeus a uma guerra estúpida no Iraque
GIDEON RACHMAN
DO "FINANCIAL TIMES"

Durante meia década a guerra no Iraque foi a questão mais controversa e importante na política internacional. Mas na semana passada, quando os militares americanos deixaram o país, sem alarde, o mundo mal tomou nota do fato.
A Europa está obcecada com sua crise da dívida soberana. Os países do Oriente Médio agora estão muito mais preocupados com a primavera árabe que com o Iraque. Mesmo os próprios EUA fizeram uma pausa apenas breve, antes de voltar a ocupar-se com questões econômicas domésticas e a telenovela de uma eleição presidencial.
A morte de Kim Jong-il, na Coreia do Norte, vai assegurar de uma vez por todas que os olhares do mundo não se demorem sobre a visão do último comboio militar americano fazendo a travessia do Iraque ao Kuait.
Há algo de estranho e impróprio nessa ausência de reflexão sobre o fim da guerra do Iraque. Mais de 100 mil civis iraquianos morreram no conflito - isso segundo a estimativa provavelmente conservadora da ONG Iraq Body Count. Milhões de iraquianos se tornaram refugiados. Milhares de soldados americanos e aliados foram mortos ou feridos.
Será que tudo isso valeu a pena? O presidente Barack Obama, no passado um crítico intransigente da guerra, fez o possível para acentuar o positivo em discurso que proferiu para soldados americanos na semana passada. Mas o veredito de Obama quando candidato - de que o Iraque era uma "guerra estúpida" - foi mais convincente.
Os argumentos morais são mais delicadamente distribuídos do que o movimento antiguerra jamais admitiu. O Iraque pagou um preço terrível pelo conflito - mas foi liberto de um regime depravado cujas mãos e até antebraços estavam mergulhados em sangue.
A derrubada de Saddam Hussein e seus filhos psicóticos, e a visão de eleições livres no Iraque, podem também ter ajudado a mudar a psicologia do Oriente Médio e, com isso, a preparar o terreno para a primavera árabe.
Mas os apoiadores neoconservadores da guerra também exageram quando procuram citar a disseminação da democracia no mundo árabe como justificativa retroativa da invasão do Iraque. A verdade é que a primavera árabe de fato começou na Tunísia, não no Iraque.
Quando se trata de "realpolitik", é difícil olhar para as consequências da guerra do Iraque e concluir que ela foi qualquer outra coisa senão uma guerra estúpida - do ponto de vista da própria América.
O maior beneficiado estratégico isolado da guerra é o Irã, adversário acirrado dos Estados Unidos.
Um efeito crucial da deposição de Saddam Hussein foi o fim da era do domínio sunita, fazendo com que as vozes da população de maioria xiita agora sejam dominantes no novo Iraque. Isso é sem dúvida o resultado mais democrático. Em termos estratégicos, porém, significa que o Iraque - que durante muitos anos serviu de baluarte contra o Irã - agora está cada vez mais próximo de seu vizinho xiita mais populoso.
É improvável que o novo Iraque se torne simplesmente um satélite do Irã. O nacionalismo iraquiano e o fato de o país ser em grande medida árabe, enquanto o Irã é majoritariamente persa, vão contrabalançar em parte a influência iraniana.
Mesmo assim, o governo iraquiano atual, liderado pelo primeiro-ministro Nuri al Maliki, é composto principalmente de xiitas pró-iranianos. Milícias apoiadas pelo Irã já são uma força poderosa no país, tendo vínculos estreitos com a Guarda Revolucionária iraniana.
Mesmo antes da retirada dos EUA, estava claro para observadores ocidentais que o governo de al Maliki estava dando muito mais ouvidos aos pontos de vista de Teerã que aos de Washington. Um sinal recente disso foi dado quando a Liga Árabe votou pela imposição de sanções ao regime de Assad na Síria.
Quando os atores chaves do mundo árabe se reuniram para sancionar a Síria, o governo do Iraque se absteve na votação, numa decisão largamente interpretada como ato de deferência aos desejos do Irã, que continua a ser aliado estreito da Síria. Um diplomata ocidental disse: "Fiquei agradavelmente surpreso pelo fato de o Iraque ter apenas se abstido sobre as sanções à Síria. Pensei que votaria contra."
Para Obama, o longamente prometido fim da guerra do Iraque tem por objetivo permitir que os EUA voltem sua atenção para prioridades mais importantes, sobretudo fortalecer a economia americana e refocalizar a política externa dos EUA sobre a China e a região do Pacífico. A retirada do Afeganistão será a próxima parte dessa estratégia.
A recusa da administração Obama em exercer o papel de liderança na guerra na Líbia refletiu essa nova determinação dos EUA de dedicar menos tempo, sangue e dinheiro no patrulhamento do Oriente Médio. Formando um contraste acentuado com a era Bush, agora são países europeus que estão defendendo políticas mais agressivas na região.
Foram a França e o Reino Unido que fizeram mais pressão pela derrubada do regime de Gaddafi na Líbia - e agora, com a Alemanha, lideram a investida por um embargo petrolífero ocidental do Irã.
Sob pressão do Congresso e também da União Europeia, é possível que a administração Obama acabe cedendo aos chamados por um embargo petrolífero do Irã, mas os americanos estão claramente receosos quanto às consequências - e com razão.
O Irã interpretaria sanções petrolíferas como um ato de guerra econômica, algo que elevaria o risco de guerra real. Israel também está debatendo abertamente a possibilidade de um ataque militar contra o programa nuclear iraniano.
Justamente quando os americanos retiram suas forças do Iraque, cresce o risco de um conflito entre os EUA e o Irã recém-fortalecido. Contrastando com isso, a queda do regime de Assad na Síria seria um golpe contra o governo iraniano. Mas poderia também levar ao colapso da Síria, o que correria o risco de criar um conflito regional que envolveria os vizinhos do país - e, eventualmente, os EUA.
O presidente Obama cumpriu a promessa que fez durante sua campanha de pôr fim à "guerra estúpida" no Iraque. Mas será preciso contenção e boa sorte para que os EUA evitem ser sugados para dentro de outros conflitos em um Oriente Médio profundamente desestabilizado.
TRADUÇÃO DE CLARA ALLAIN
A China vai quebrar?
Considere o panorama seguinte: o crescimento recente foi baseado num enorme boom de construção alimentado pela alta dos preços dos imóveis, boom esse que exibe todos os sinais clássicos de uma bolha. Houve um crescimento acelerado do crédito - tendo boa parte desse crescimento se dado não através dos bancos tradicionais, mas por meio de "operações bancárias nas sombras", não regulamentadas, que não são sujeitas a fiscalização governamental, nem contam com garantias governamentais. Agora a bolha está estourando - e existem motivos reais para temer uma crise financeira e econômica.
Estou descrevendo o Japão no final dos anos 1980? Ou a América em 2007? Poderia estar. Mas, neste momento, estou falando da China, que está emergindo como mais um ponto de perigo em uma economia mundial que realmente não precisa disso neste momento.
Venho relutando em me manifestar sobre a situação da China, em parte porque é tão difícil saber o que realmente acontece por lá. Todas as estatísticas econômicas podem ser mais bem vistas como alguma forma especialmente entediante de ficção científica, mas as cifras chinesas são mais fictícias que a maioria. Eu pediria um parecer a especialistas na China, mas parece que não há dois sinólogos que estejam contando a mesma história.
Mesmo assim, até mesmo os dados oficiais são preocupantes - e as notícias recentes são suficientemente dramáticas para fazer soar alarmes.
O que mais chamou a atenção na economia chinesa nos últimos dez anos foi como o consumo doméstico, embora tenha aumentado, estava defasado em relação ao crescimento total. Hoje os gastos dos consumidores representam apenas cerca de 35% do PIB, mais ou menos a metade do nível visto nos Estados Unidos.
Então quem está comprando os bens e serviços que a China produz? Parte da resposta é "nós estamos": à medida que a participação dos consumidores na economia foi caindo, a China foi cada vez mais confiando em superávits comerciais para manter seu setor manufatureiro ativo. Mas a história maior, desde o ponto de vista da China, são os gastos com investimentos, que alcançaram quase metade do PIB.
A pergunta óbvia é: com a demanda dos consumidores relativamente fraca, o que motivou todos esses investimentos? E a resposta é que eles dependeram, em grande medida, da bolha imobiliária sempre crescente. Desde 2000 os investimentos no setor imobiliário mais ou menos dobraram como parcela do PIB, sendo diretamente responsáveis por mais de metade do aumento geral nos investimentos. E, com certeza, boa parte do resto do aumento se deveu a firmas que se expandiram para vender para o setor crescente da construção.
Sabemos com certeza que o crescimento do setor imobiliário foi uma bolha? Ela teve todos os sinais: não apenas a alta dos preços, mas também o tipo de febre especulativa que já conhecemos bem demais de nossas experiências de alguns anos atrás. Pense no litoral da Flórida.
E houve outro paralelo com a experiência americana: enquanto o crédito se expandiu, boa parte dele veio não de bancos, mas de um sistema bancário nas sombras, não supervisionado e não protegido. Houve diferenças enormes nos detalhes: o financiamento nas sombras à moda americana geralmente envolveu firmas de prestígio em Wall Street e instrumentos financeiros complexos, enquanto a versão chinesa tende a passar por bancos clandestinos e até mesmo casas de penhores. Mas as consequências foram semelhantes: na China, assim como aconteceu nos EUA alguns anos atrás, o sistema financeiro pode estar muito mais vulnerável do que revelam os dados sobre os bancos convencionais.
Agora a bolha está estourando visivelmente. Quantos danos vai causar à economia chinesa - e ao mundo?
Alguns comentaristas dizem que não precisamos nos preocupar: que a China tem líderes fortes e inteligentes que farão o que for preciso para lidar com um desaquecimento. O que fica implícito, embora não seja declarado com frequência, é a ideia de que a China poderá fazer o que for preciso porque não precisa preocupar-se com boas maneiras democráticas.
Para mim, porém, isso não soa convincente. Me lembro muito bem de ouvir frases tranquilizadoras semelhantes sobre o Japão nos anos 1980, quando os burocratas brilhantes do Ministério das Finanças supostamente tinham tudo sob controle. E, mais tarde, houve as declarações de que a América jamais repetiria os erros que levaram à década perdida do Japão - sendo que, na realidade, estávamos tendo um desempenho ainda pior que o Japão tinha tido.
Quero registrar que as declarações sobre política econômica feitas por autoridades chinesas não me parecem especialmente lúcidas. Em especial, o modo como a China anda reagindo negativamente a estrangeiros - entre outras coisas, impondo uma tarifa punitiva a automóveis de fabricação americana, algo que não ajudará sua economia em nada mas ajudará a envenenar as relações comerciais - não soa como um governo maduro que sabe o que está fazendo.
E evidências empíricas sugerem que, embora o governo chinês possa não ter sua atuação limitada pelo Estado de direito, essa atuação é limitada pela corrupção ampla, que significa que o que acontece de fato ao nível local pode guardar pouca semelhança com o que é ordenado em Pequim.
Espero que eu esteja sendo desnecessariamente alarmista. Mas é impossível não se preocupar: a história da China soa um pouco parecida demais com as quebras que já testemunhamos em outras regiões. E uma economia mundial que já está sofrendo com o caos na Europa realmente não precisa de um novo epicentro de crise.
TRADUÇÃO DE CLARA ALLAIN

Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do jornal "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às segundas.