segunda-feira, 18 de julho de 2011

Argentina - Uma recuperação de alto risco
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JUDE WEBBER
DO "FINANCIAL TIMES"

Aprender com a experiência pode ser uma máxima útil. Mas como fica isso se a lição for um calote e a experiência for a da Argentina?

Enquanto a Grécia se aproxima cada vez mais da beira do abismo, a dívida irlandesa e portuguesa é rebaixada para o status de "junk", ou instável, e a palavra "calote" surge ameaçadora no horizonte dos Estados Unidos, autoridades argentinas apontam com alguma arrogância para o crescimento alto e sustentado de seu país. Isso, elas afirmam, comprova não apenas que existe vida após a maior moratória soberana do mundo, como também que essa vida pós-calote pode ser uma festa.

"A visão convencional foi desmentida", disse Mercedes Marcó del Pont, chefe do banco central argentino, em entrevista recente à televisão, aludindo às receitas de dívida-mais-austeridade propostas à Grécia. "Vamos prender a bola e olhar para o que aconteceu com a economia em escala global. Vamos aprender com o que aconteceu em muitos países em desenvolvimento, como a Argentina, que fizeram coisas que desafiaram a visão convencional por completo e que tiveram resultados muito bons para nós."

Recentemente o economista laureado com o Nobel Paul Krugman apresentou o mesmo argumento. Fazer a coisa supostamente certa deu muito errado para a Argentina no final dos anos 1990; e, embora a moratória tenha desencadeado uma recessão selvagem, em pouco tempo ela deu lugar a uma recuperação veloz e prolongada. "Com certeza o exemplo argentino sugere que o calote é uma ótima ideia", ele argumentou em um post em um blog do "New York Times".

Antes da moratória argentina sobre uma dívida soberana de US$100 bilhões, em 2001, a ideia parecia ser praticamente impensável. Na época, o país era o exemplo da região em matéria de políticas econômicas liberais. Mas, à medida que um pacote de resgate internacional foi se seguindo a outro, a dívida só fez crescer. Ao mesmo tempo, os protestos sociais se multiplicavam, na medida em que o sistema argentino de taxa de câmbio fixa impunha a deflação a uma economia cada vez menos competitiva (isso pode parecer muito familiar, pelo menos à primeira vista, para qualquer pessoa que esteja acompanhando os acontecimentos na Grécia).

Hoje a Argentina é a prova de que um país pode, sim, dar as costas ao consenso internacional, declarando moratória e quebrando um câmbio fixo "inquebrável", e ainda viver para contar a história. No entanto, o resultado final não é tão atraente nem tão simples e direto quanto sugerem alguns de seus proponentes.

A recuperação vem sendo impressionante -- a economia cresceu 65% entre 2002 e o início da crise financeira mundial em 2008; a previsão de crescimento para 2011 acaba de ser elevada para 8,2%. Mas o governo ainda não conseguiu limpar a mácula do calote que manchou a reputação argentina, nem convencer o mundo de que seu populismo heterodoxo constitui uma receita sustentável para se administrar um país.

"O modelo", como a presidente Cristina Fernández descreve o misto de políticas empregado no país, vem funcionando muito melhor e por muito mais tempo do que muitos julgavam ser possível. Pelo fato de a Argentina continuar isolada dos mercados internacionais de capitais, ela tem superávits comerciais e fiscais gêmeos. Conservar competitiva a taxa de câmbio é fundamental para essa abordagem, já que isso ajuda a gerar um superávit na balança de pagamentos, ao mesmo tempo proporcionando incentivos aos exportadores. Essa opção não estará aberta aos estrategistas gregos enquanto sua moeda continuar a fazer parte da zona do euro.

Outra característica crucial foi o compromisso rígido com a disciplina fiscal assumido por Néstor Kirchner, o microadministrador marido de Fernández, que, como presidente entre 2003 e 2007, fiscalizou as receitas tributárias com olho de lince. Desde 2007, contudo, essa disciplina vem sendo menos rígida, e inflação vem subindo à medida em que o governo passou a recorrer à impressão de dinheiro para fazer frente a algumas de suas necessidades financeiras. Estimativas privadas sugerem que a Argentina esteja rumando para uma inflação de 25% ou mais este ano, o quinto ano seguido de inflação de dois algarismos. O governo, por sua parte, afirma que a inflação está em 9,7%.

Há outros sinais de alerta piscando. Os gastos públicos vêm subindo mais que a receita tributária. Os polpudos subsídios energéticos e aos transportes parecem cada vez mais insustentáveis. As eleições presidenciais de outubro, nas quais Cristina Fernández tem boas chances de conquistar um segundo mandato, significam que essa política de mão aberta não deve terminar tão cedo.

Tudo isso vem solapar a imagem da Argentina no próprio momento em que o governo crê que o país, orgulhoso por ter ingressado no grupo das 20 economias líderes, tem valiosas lições maiores a oferecer.

Para Fernández, que vem comandando o país sozinha desde a morte repentina de seu marido em outubro passado, a injustiça disso é palpável. Na visão dela, o Fundo Monetário Internacional, que moldou a política econômica nos anos anteriores à moratória, errou em seu diagnóstico da Argentina, prescrevendo políticas neoliberais nefastas. Mais recentemente, ela acredita, as agências de classificação erraram no diagnóstico da crise financeira. No entanto, o mundo ainda reluta em reconhecer a recuperação argentina ou levá-la a sério.

Uma razão disso é que, mais além dos números estelares do crescimento, o quadro geral é desigual. Para começar, o boom deve muito a fatores globais. A Argentina é uma das maiores produtoras mundiais de commodities, e a agricultura compõe 35% de suas vendas ao exterior. Ademais, não apenas a China está sedenta dos recursos naturais argentinos, como a classe média do vizinho Brasil, seu principal parceiro comercial, está avidamente comprando carros, o maior produto de exportação manufaturado da Argentina.

"O comércio vive um momento de alta histórica. Este é o melhor mundo possível para a Argentina", diz Lucio Castro, do Cippec, um instituto de estudos sediado em Buenos Aires. "Mas, tirando os setores intensivos em recursos naturais, a produtividade no resto da economia é baixa, e a informalidade é altíssima."

O desemprego, que ficou em 7,4% no primeiro trimestre, é baixo, mas o índice de investimento é medíocre: 19,4% do PIB. Enquanto isso, diz Castro, a produtividade "não é ruim -- é lamentável".

Enquanto isso, após anos de carência de recursos, o sistema de ensino do país, antes admirado, foi reduzido a uma sombra do que era. Críticos afirmam que o mesmo pode ser dito do escritório governamental de estatísticas, que passou a ser submetido à influência maior do governo, levando muitos a cogitar que as cifras relativas à inflação, pobreza e crescimento venham sendo apresentadas sob ótica demasiado positiva.

A razão entre dívida externa e PIB da Argentina é de invejáveis 35%, mas Claudio Loser, o mais alto funcionário do FMI para a América Latina na época da moratória, calcula que o país ainda deve até US$16 bilhões, incluídos os juros, a donos de obrigações que foram alvos do calote. Isso, apesar de duas trocas de obrigações que reestruturam 92,4% da dívida sobre a qual foi declarada a moratória. A Argentina também deve US$ 7 bilhões a governos ocidentais, e, embora seja largamente vista como estando disposta a pagar, a impressão geral é que não se dispõe a fazer isso sob quaisquer termos senão os que ela própria definir.

Embora não haja nenhum calote despontando no horizonte, é possível que haja turbulência pela frente. Mark Weisbrot, do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington, que enxerga mais mérito do que muitos analistas econômicos nas estratégias do governo argentino, reconhece: "Nenhum modelo econômico funciona para sempre. O maior problema que a Argentina enfrenta é que sua inflação está mais alta que as de seus parceiros comerciais, de modo que a moeda começa a se valorizar em termos reais. Mas a Argentina não se encontra à beira de um precipício."

Entretanto, a prova de que o país não pode apostar tudo em uma economia em crescimento é o fato de que -- tirando os chineses, que fecharam três acordos energéticos multibilionários no ano passado -- os investidores não estão correndo para a Argentina.

A inflação, a agitação trabalhista, uma crise energética e a política econômica imprevisível de um governo intervencionista que em 2008 nacionalizou os fundos de pensão privados, tudo isso pode dificultar os negócios com o país, para dizer o mínimo. Enquanto isso, a fuga de capitais chegou a estimados US$60 bilhões ou mais nos últimos quatro anos e vem se acelerando, superando de longe os US$ 26 bilhões que a Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o Caribe calcula que entraram no país como investimentos externos diretos desde 2007.

Ademais, o governo caiu em contradição em relação a um princípio fundamental: o combate à pobreza. Um esquema de benefícios a crianças mostrou ser altamente popular, mas a inflação erodiu estimados 30% de seu valor real. Um estudo recente também constatou que 50% da população é pobre ou corre o risco de ficar pobre, apesar de dados oficiais indicarem um índice de pobreza de pouco menos de 10%. Roberto Lavagna, que, como ministro da Economia de 2002 a 2005, ajudou a arquitetar a recuperação da Argentina, descreve isso como "uma contradição insuperável para um governo que tem um discurso progressista e populista".

Enquanto isso, instituições vêm sendo erodidas, e a interferência do Estado vem crescendo. Bancas de jornais foram fechadas temporariamente por venderem o "Clarín", o jornal diário de maior circulação no país e crítico acirrado do governo. O governo multou consultorias privadas por divulgarem dados sobre a inflação vistos como enganosos, chegando a abrir uma ação criminal contra uma delas. É ignorado o fato de analistas dizerem que o índice de inflação oficial possibilitou ao governo fazer economias enormes com os pagamentos de suas obrigações reajustadas segundo a inflação.

Então em que pé a Argentina se encontra agora? Apesar de ter se recuperado excepcionalmente bem da moratória, Loser diz que seu país de origem "está se tornando irrelevante". Um dos países mais ricos do mundo um século atrás, a Argentina ainda tem a maior renda per capita da região, com base na paridade do poder de compra. Mas sua importância relativa "caiu vertiginosamente", sua economia tem apenas um sexto das dimensões da economia brasileira e um terço da mexicana. "O país que vai superar a Argentina em pouco tempo, se a Argentina não se cuidar, é a Colômbia, que está crescendo bem e de modo muito mais racional", diz Loser.

O resultado é que a Argentina se apresenta isolada, coadjuvante de peso menor no G20, superada em seu ritmo de crescimento pelos países queridinhos do mercado emergente. Seu engajamento internacional parece limitar-se à busca de apoio para suas negociações com o Reino Unido em torno das disputadas Ilhas Malvinas.

Embora falar de um esfriamento da economia seja tabu, analistas dizem que o governo precisa começar a controlar a inflação e a estabilizar a taxa de câmbio real, que torna provável alguma desvalorização após a eleição. Nos últimos 18 meses o peso caiu quase 8% em relação ao dólar.

"O governo tem uma política monetária e fiscal pró-inflacionária que é incoerente com a política de câmbio", fala Martín Redrado, demitido da presidência do banco central no ano passado em função de uma batalha sobre o uso das reservas para pagar parte da dívida. "Mais cedo ou mais tarde as duas coisas vão entrar em choque."

Isso não significa que uma quebra ao estilo antigo seja obrigatória. "A Argentina não vai explodir como fez antes", acrescenta Redrado. "Mas está se encaminhando para uma tempestade."

O governo se orgulha do fato de que os profetas da catástrofe já mostraram estar enganados antes _e, por enquanto, a soja é a salvadora da pátria. Enquanto a fuga de capitais vem se acelerando, quase US$100 bilhões em receitas agrícolas entraram no país nos últimos quatro anos, e, a não ser que os preços das commodities ou as condições meteorológicas mudem muito, a Argentina pode estar muito bem posicionada.

Mesmo assim, ela corre o risco de continuar sendo um modelo do que não deve ser feito, em lugar de ser um exemplo promissor do que fazer.

"Daqui a 20 anos a história vai nos perguntar: 'O que vocês fizeram com a bonança (das commodities)?' Houve um aumento no consumo, nas empresas públicas e nos salários, ou foram feitos investimentos em infraestrutura, saúde e economias para uma fase de dificuldade?", diz Castro. "Não estamos fazendo nossa lição de casa e nos convertendo em um país desenvolvido."

PETRÓLEO E GÁS

"A economia energética foi totalmente alterada por más intervenções do Estado"

Se existe um calcanhar de Aquiles evidente no chamado "modelo" do governo argentino -- um misto de políticas econômicas baseado em superávits comerciais e fiscais e uma moeda competitiva --, é a política energética.

Ao mesmo tempo em que Buenos Aires se gaba de sua economia em franco crescimento, a cada inverno as fábricas são obrigadas a passar por apertos para conseguir o gás de que precisam para continuar a produzir. No setor agrícola, crucial para a economia, não é incomum o diesel faltar no auge da colheita.

De fato, a indústria é mantida com suprimentos energéticos escassos para evitar a perspectiva politicamente intragável de restringir o suprimento para os consumidores residenciais. Nos dez anos passados desde a moratória, estes se acostumaram a pagar preços fortemente subsidiados, não tendo, portanto, incentivos para restringir seu consumo. "A economia energética da Argentina foi totalmente alterada por más intervenções do Estado", disse o analista de energia Francisco Mezzadri.

Apesar do fato de possuir grandes reservas de petróleo e gás, incluindo reservas vistas como estando entre as maiores do mundo de gás de xisto, de extração difícil, a Argentina se tornou importadora líquida de energia. Enquanto o Brasil vem fazendo investimentos pesados para desenvolver suas reservas marítimas maciças descobertas recentemente, no mês passado a Argentina assinou um contrato de 20 anos para compras gás natural liquefeito do Qatar por um preço não revelado -- um acordo que é pouco provável que seja o último de seu tipo.

O mercado energético argentino, fortemente regulamentado, tampouco conseguiu atrair os investimentos necessários para aumentar a capacidade de refino tanto quanto seria necessário para acompanhar a demanda doméstica.

Embora o governo negue que exista um problema energético, este mês ele teve dificuldade em encontrar US$1,5 bilhão adicional para financiar seus subsídios ao setor, tendo esgotado na metade do ano o dinheiro que havia reservado para esse fim. Se o crescimento alto continuar, o que significa que a indústria precisará de mais combustível, a energia continuará a onerar as finanças de um país em que os gastos públicos cresceram 34,5% entre maio de 2011 e maio deste ano.

Enquanto isso, os campos de petróleo e gás em final de viabilidade, com produtividade mais baixa e falta de investimento na exploração, somados aos subsídios crescentes aos preços e tarifas do setor (os subsídios chegaram a US$6,3 bilhões no ano passado), vêm levando a uma queda vertiginosa na produção e nas reservas. O setor energético também está no vermelho.

"A Argentina, que em 2006 tinha um superávit comercial energético de US$ 5,6 bilhões, vai chegar ao fim de 2011 com um déficit estimado em US$ 3 bilhões", disseram oito ex-secretários da Energia este mês em documentado redigido para funcionar como alerta sobre a fragilidade energética, antes da eleição presidencial de outubro.

Não será fácil elevar as tarifas de energia em um tempo de inflação alta. A alternativa será continuar a subsidiar o consumo energético com recursos do Estado que poderiam ser empregados para fazer mudanças estruturais para reduzir a pobreza.

Se Cristina Fernández for reeleita, como se prevê, ela terá que efetuar mudanças, diz Mezzadri -- "sob pena de esta política acabar convertendo a Argentina em um país que troca a soja (seu produto de exportação mais rentável) por energia."

Tradução de Clara Allain

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