sábado, 18 de fevereiro de 2012

Desenvolvimento científico e tecnológico e o poder militar (2006)

Fábio Estefano Erber: professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Durante a maior parte da história dos Estados-Nações o poder militar constituiu a essência da política externa, codificado pela "escola realista" de relações internacionais. Com o fim da Guerra Fria e a cheia da maré liberal, apoiada nos governos Thatcher, Reagan e Kohl, ascendeu uma visão que postulava que a dimensão militar destas relações tendia a perder sua importância passada e que a competição entre as nações passaria a se dar primordialmente no campo econômico.

Um dos principais ideólogos da cânone neo-liberal, Francis Fukuyama, refinaria esta posição: os países que teriam organizado sua política na forma democrática e sua economia segundo o mercado, atingindo uma forma ideal de sociedade e completado sua história, no sentido a ela conferido por Hegel, seriam, pois, "países pós-históricos", distintos de outros países, cujo regime político ainda seria autoritário e com forte intervenção do Estado na economia, que ainda estariam por completar a sua História e seriam, assim, "países históricos". Nesta influente visão, o primeiro grupo de países, crescentemente homogeneizados pela globalização, competiria entre si economicamente, tenderia a estabelecer mecanismos de cooperação e integração e resolveria seus conflitos por meios pacíficos. Por oposição, os países ainda "históricos" seriam pouco cooperativos com os demais países e estariam sempre tentados a resolver os conflitos manu militari. Guerras eventuais poderiam, pois, surgir entre países "históricos" e entre estes e os países "pós-históricos". Portanto, a estes últimos caberia a missão de desanimar os países "históricos", ao mesmo tempo em que os propeliam rumo ao fim da História, pressionando-os e incentivando-os a adotarem regimes democráticos e economias de mercado.

Em outras palavras, no plano internacional, o neo liberalismo continha uma doutrina militar consistente e convergente com suas doutrinas econômica e política.

Estas doutrinas foram aplicadas com denodo pelos países avançados, notadamente os Estados Unidos, levando vários países, como o Brasil, a, no plano militar, reduzir os orçamentos destinados às Forças Armadas Nacionais, desmantelar sua indústria de armas convencionais e a subscrever acordos relativos à fronteira militar, como as armas nucleares (Tratado de Não-Proliferação Nuclear) e químicas (Organização para a Proteção de Armas Químicas).

No entanto, não se observou no âmbito dos países desenvolvidos igual esforço em reduzir sua capacidade bélica, especialmente no caso dos Estados Unidos, política justificada pela identificação de "Novas ameaças", como o terrorismo, o fundamentalismo islâmico, os Estados "renegados" e o narcotráfico (Guimarães, 2006), legitimada, a seguir, pelos atentados iniciados em 11 de setembro de 2001.

Segundo estimativas do Bonn International Centre For Conversation (BICC), cerca de 80% dos gastos militares mundiais são realizados pelos países membros da OECD, correspondendo a cerca de 2,4% do PIB da área. Os Estados Unidos respondem por cerca de 50% dos gastos mundiais e vem aumentando a sua participação entre 2001 e 2004 seus gastos militares cresceram 40%, atingindo 4% do PIB (US$ 455 BILHÕES, dos quais 45% correspondem aos gastos no Iraque e Afeganistão.

Na União Europeia, no mesmo período, o crescimento foi muito menor (2,9%) acentuado a polarização militar entre os países capitalistas avançados. A China aumentou os seus gastos militares em proporção ainda maior - 35,6% entre 2001 e 2004. Mesmo assim, seu dispêndio em 2004 (US$ 35,4% BILHÕES) corresponde a menos de 8% do gasto americano. A Rússia também vem aumentando seus gastos, que correspondiam 10% do seu PIB em 2004. Em contraste, sempre no mesmo período, a América Latina reduziu seus gastos militares de US$ 25,2 para US$ 23,7 BILHÕES, o que corresponde a 1,2% do PIB regional, a mais baixa participação entre as regiões mundiais. Conforme nota a mesma instituição, em 2004 os gastos da OECD com a cooperação para o desenvolvimento eram equivalentes a menos de 10% dos gastos militares.

As relações entre desenvolvimento militar e desenvolvimento científico e tecnológico são muito antigas - em 212 A.C. Arquimedes desenhou máquinas de guerra para a defesa de Siracusa contra os romanos. Na era moderna, a Primeira Guerra Mundial foi chamada "a guerra dos químicos" e a Segunda a "guerra dos físicos" (Rose e Rose, 1971). Esta última, principalmente através do programa nuclear definiria o formato de grandes projetos científicos, tecnológicos e industriais - a "Big Science". A Guerra Fria consolidaria a articulação entre os sistemas militar, científico e tecnológico e industrial".

Observando os gastos governamentais em pesquisa e desenvolvimento (P&D) nos países capitalistas avançados verifica-se uma evolução mais acentuada da polarização: enquanto as antigas potências imperialistas como Inglaterra, França e Alemanha reduzem o percentual de seus gastos governamentais destinados à defesa ao longo do tempo, os Estados Unidos não o fazem e, no passado recente, aumentam esses gastos como percentual do total e em valor absoluto - o orçamento federal para o ano fiscal de 2006 prevê gastos em P&D para objetivos de defesa de US$ 73,5 bilhões (correspondentes a quase 60% dos gastos totais do governo federal para P&D), um aumento de quase 80% sobre os valores de 2000. Note-se que essas cifras não incluem os gastos federais em P&D do programa especial, que, em 2006, somam pouco mais de US$ 7 bilhões, cerca de 6,3% do total de gastos governamentais.

A Guerra Fria e os gastos militares conexos tiveram outra implicação: o desenvolvimento do conceito de "tecnologia duais" - tecnologias que podem ser de uso militar e civil. Até os anos setenta, a preocupação era com o "transbordamento" (spillover) das tecnologias militares para o uso civil. A importância dos gastos militares para o desenvolvimento de inovações radicais como o avião a jato, os componentes microeletrônicos semi-condutores, equipamentos de processamento de dados e transmissão de informações, a automação da produção em pequena escala através do controle númerico e equipamentos para energia nuclear são bem documentadas. Ou seja, a liderança tecnológica dos Estados Unidos dependeu de forma significativa das inovações geradas no complexo militar e, depois, adaptadas e transferidas para o mercado.

Embora o spillover tenha se mantido, inclusive através da terceirização de atividades militares, delegando a empresas privadas funções de apoio, a partir dos anos 80 e, mais marcadamente na década seguinte, a preocupação militar passou a ser o spill in, o uso militar de tecnologias civis. Esta preocupação aumentou muito no ano passado recente, tendo em vista a própria terceirização de atividades de apoio, o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e a possibilidade do uso da biotecnologia como arma, bem ilustrado pelos ataques como antrax nos Estados Unidos em 2001. Em consequência, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos aumentou substancialmente a pesquisa feita em cooperação com empresas privadas, mobilizando, direta ou indiretamente os demais segmentos do sistema nacional de inovação (Reppy, 2006).

No plano internacional durante a Guerra Fria o conceito de tecnologias duais deu origem a restrições a exportações dos Estados Unidos e seus aliados de produtos e tecnologias que pudessem ser usadas para fins militares no bloco soviético, administradas pela CoCom (Coordinating Committee for Multilateral Exports Control), desmantelado após a derrocada da União Soviética e substituído pelo Acordo de Wassenaar, que se destina a controlar exportações de armas e tecnologias duais (Reppy, 2006). Assinado por 40 países, inclui tanto os países capitalistas desenvolvidos como membros do antigo bloco soviético e alguns países em desenvolvimento, como a Argentina e a África do Sul (o Brasil não é signatário). Embora o acordo seja mais flexível que o CoCom, a introdução de controles sobre tecnologias duais de amplo alcance, como a biotecnologia e as tecnologias de informação está sendo discutida - o que pode vir a prejudicar os retardatários nestas áreas como o Brasil.

Em 2004, o Brasil destinou 1,2% dos gastos governamentais em P&D aos objetivos de defesa,uma das mais baixas participações mundiais. É compreensível que num país como o Brasil, que tem um passado recente de ditadura militar e que enfrenta restrições fiscais para lidar com graves problemas sociais, haja relutância em aumentar os gastos militares. Com efeito, as condições operacionais das Forças Armadas sofreram, ao longo das duas últimas décadas uma deterioração tal que é duvidoso que estejam aptas a exercer adequadamente o seu papel constitucional de defesa do território e da soberania nacional.

Num regime democrático, a política militar está subordinada ao poder civil e às políticas por este determinadas. Mesmo ressalvando a falta de conflitos regionais mais sérios que demandam o envolvimento militar do Brasil, as condições específicas do país, notadamente sua área geográfica, a extensão de fronteiras e, especificamente, a ocupação da Amazônia, são suficientemente problemáticas para justificar o investimento em equipamentos e tecnologias para as Forças Armadas. A dependência de importações nesse campo, arriscada pelas restrições que outros Estados podem impor, deveria ser mitigada pelo estabelecimento, seguindo o exemplo dos países avançados, notadamente dos Estados Unidos, de parcerias entre as forças e o sistema nacional de inovação. É de se supor que boa parte das tecnologias desenvolvidas no decorrer desta parceria terão uso dual - ou seja, trarão benefícios também em termos de maior capacitação científica e tecnológica que poderá ser utilizada para fins de competitividade internacional.

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