sábado, 27 de dezembro de 2014

INTERVENÇÃO OU INTIMAÇÃO DIVINA

INTERVENÇÃO OU INTIMAÇÃO DIVINA

            Gente, fui aprovado!
            Foi aos berros que entrei na cozinha naquela manhã para noticiar a minha entrada como docente em uma Universidade Federal no sul do país. Infelizmente a tática de esperar na cama e aguardar que todos estivessem reunidos para o desjejum dera em nada. No local, junto a pia, encontrava-se apenas minha mãe. Ela cantarolava baixinho.
            Diacho, onde está todo mundo, pensei irritado comigo mesmo por não ter esperado mais um pouco na cama.
Mamãe não disse nada ante minha chegada intempestiva.  Apenas se virou lentamente e fixou os olhos em mim enquanto enxugava, torcia e retorcia as mãos no avental.  Em silêncio. Em choque. Em transe.
 Fiquei incomodado com a reação dela.  Eu que esperava gritos, sorrisos, beijos e abraços, muitos abraços murchei como uma uva passa. Que me importava que o pessoal da casa estivesse dormindo às 11 horas da manhã?  Diante de mim, a principal incentivadora da minha vida profissional estava calada. Nenhum afago. Nenhum sorriso. Nenhuma lágrima. Fiquei incomodado com a reação dela.  Bah, mas quem entende as mulheres?   Ou melhor, quem compreende as mães? Pois naquele exato instante estava eu diante de uma completa estranha. À minha frente estava uma mulher morena, pequena e baixa de olhar sereno e lábios cerrados me olhando. E eu olhando para ela.  Senti que algo ou alguém havia usurpado o corpo daquela que me concebera. Não reconhecia nela aquela mulher guerreira que durante anos me motivara, auxiliara e sacrificara tantas e tantas vezes. Balancei a cabeça atarantado. E veio à mente a conhecida história familiar. Em meados dos anos 78, após conclusão de um curso de especialização no Rio de Janeiro, meu pai cuja alma gaúcha não esconde de ninguém, teve oportunidade de escolha para ser transferido para Santa Maria. Acontece que a senhora gravidíssima do filho que agora escreve não aceitou de jeito nenhum. “Frio, muito frio”. Pelo estado delicado que ela se achava, meio a contragosto, papai buscou satisfazê-la. Arriscou seu futuro. Como era de se esperar, infelizmente, as coisas não deram muito certo na região escolhida. Exatos cinco anos estavam de volta ao interior de São Paulo. Papai nunca se conformou com a infame trajetória.         
            E agora, me encontrava quase na mesma situação. Querem saber, estava encrencado. Por bons motivos. Existe algo pior que não realizar seus sonhos? Antes mesmo de o resultado do concurso público sair eu já sonhava com os lírios dos campos de Veríssimo. Vagava entre as imagens de Vargas, Brizola, Anita Garibaldi e tantos outros guardiães e gáudios da alma gaúcha e brasileira. Via-me nos braços amorosos de uma gentil prenda. Ensaiava uns passos ligeiros do xote, do fandango ao som de um vanerão.  Nas festivas estâncias fazia par com Pantagruel ao me empanturrar de churrasco, vinho e mate.
Mas cá entre nós existe algo pior que desapontar uma mãe? Senhor, não, não podia. Ainda mais a minha tão sensitiva. Meio bruxa, costumávamos eu e meus irmãos falar.   Ninguém conseguia esconder nada dela.  Aproximei-me dela e disse:
- Mamãe, sou um grande idiota. Desculpe-me se a assustei!           
            Ela passou os braços na minha cintura e apertou. Então as lágrimas hibernadas irromperam e deslizaram pelo rosto. Choramos juntos. Antes de a avalanche passar ficamos cercados pelos dorminhocos.
            - O que está acontecendo? Por que mamãe está chorando? O que você fez?
            - Nada! Juro.
            Mamãe com um simples olhar acabou com o alvoroço. E sem largar meu braço disse num tom sério:
            - Ele irá nos deixar.
            - Eu não-não decidi nada ainda, mãe!
             - Ele passou no concurso da UFSM! - bradou minha irmã mais velha num tom exultante.   
            - Tchi! – resmungou meu pai e acrescentou num tom irônico: Sua mãe não vai deixar você ir por causa do frio, da distância e sabe-se-lá os motivos que lhe derem na telha. Eu já aconteço essa história de outros tempos.
            Ela não se abalou. E falou mais ou menos assim:
            - Aí que você se engana meu velho. Ele foi intimado.
            - Intimado? Por quem?
            Mamãe suspirou profundamente. E meus olhos ainda úmidos presenciaram algo inimaginável. Estava do lado de uma giganta. Uma mulher corajosa, otimista, cheia de fé e virtudes. Senti aos trinta anos e com 1,90 de altura um ser pequenino diante dela e de suas palavras:
            - Não esmoreça diante dos sacrifícios, desafios e dificuldades que hão de estar pelos caminhos que irá percorrer. Você estará longe de sua família, amigos e conhecidos apenas fisicamente. Espiritualmente, estaremos sempre ao seu lado. Há um projeto reservado para você. Cumpra com dedicação, solidariedade e amor. Ensine e aprenda. Aprenda e ensine.  Essa noite em sonho Nossa Senhora anunciou sua vitória, meu filho.  Também me disse que eu seria a primeira pessoa que receberia a notícia. Acho que por isso todos dormiram tanto, não é verdade? Vamos cumprimentem seu irmão.
            Enquanto era parabenizado, não tirei os olhos dela. Mas quem pode entender as mulheres? E o coração de mãe? Confesso que as batidas de meu coração estrondeavam dentro do peito. Eu sabia que tudo iria dar certo. E tem dado, graças a Deus.   


José Renato Ferraz da Silveira  

Vida

Vida

Vida....é assim que a chamo.
Vida...foi o alimento da minha alma.
 Recordo da Vida...  quando fecho meus olhos: relembro dos longos abraços, das conversas e risos, das viagens e de cada gesto de carinho e ternura através de um poema ou um post it, ou mesmo através de um sorriso ou um olhar iluminado. Aquela piscadela mortal. Ou mesmo do beijo de despertar.
Carrego na memória: as lembranças dos beijos doces, as canções, aqueles olhos verdes fitando-me. Momentos felizes e o prazer desmedido.
Revejo as fotos, as promessas de amor eterno, sinto o gosto do ratatouille, entre outros apetitosos pratos da culinária ocidental em cada viagem ao passado. Cada música em homenagem ao gato preferido.
Ah, e as gargalhadas!!! Cada alegria...Cada momento inesquecível. Eterno para mim. O cheiro do cravo que gostava de presentear. O amor eterno.
Mas vivo agora num novo ciclo no qual enfrento crises internas.
O novo se descortina para mim. Tenho medo. Tenho curiosidade.
E esse novo mundo me traz a citação de Dickens: “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário”.
E não esqueço os riscos, as incertezas, as contradições. Eles estão na minha vida. Sei que os tempos de resistência vão continuar. Sei que é preciso constantemente recomeçar do zero, que tudo se esquece. Às vezes, tento rir desses momentos. Sei que a um conformismo se sucederá outro, que uma alegria será consumida por outra alegria.
Novas aventuras são desconhecidas. Não há terra prometida. Há um futuro incerto e estarei sempre cercado de mistério. O sentimento de caminhar entre as trevas e a luz. Mas contemplo um horizonte... Como diria a minha amiga Yasmine: “Constantemente recomeçar, afinal a imutabilidade é a morte”!


Perder as palavras

Perder as palavras

A vida é uma jornada de nascimento à morte, uma caminhada ao mesmo tempo externa e interna, pelo período que nos couber. Como diria Cecília Meireles, “entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação dos meus desejos afligidos”.
Mas, há momentos em nossa existência, em que os desejos mais agudos e que nos angustiam são silenciados diante do belo.
A contemplação do belo é realmente um verdadeiro aproximar-se da luz divina e um afastar-se das trevas. É um momento mágico e de sublime deleite aos olhos, o espelho da alma. Sinto-me tão frágil, tão inexistente, mas ao mesmo tão ardente e sedento por contemplá-la novamente.
 Encontrei a perfeita definição, na obra Confissões de Santo Agostinho (354-430), em trecho que trata a respeito da relação dicotômica entre luz-sabedoria – trevas-ignorância: “(...) que luz é esta que me ilumina de quando em quando e me fere o coração, sem o lesar? Horrorizo-me e inflamo-me: horrorizo-me enquanto sou diferente dela, inflamo-me enquanto sou semelhante a ela. É a Sabedoria, a própria Sabedoria que bruxuleia em mim e rasga a minha nuvem. Esta me encobre de novo quando desanimo por causa da escuridão e do peso das minhas misérias(...)”.
Para mim, a beleza feminina é um toque majestoso do Criador. Como diria meu pai: “Se o criador estabeleceu as regras da natureza para a criação do universo.  Num momento de divina inspiração, na criação da terra e de seus habitantes. Inovou numa equação, onde incluiu as variáveis: o dedo mágico do pintor, os olhos de lince do fotógrafo, mas com uma visão tão abrangente como  a do sol; a sensibilidade da psicóloga, a sutil mão do  escultor, a extravagante criatividade do arquiteto, o refinado capricho da decoradora, a inefável beleza do próprio paraíso”.