Revolta chega aos ricos, agora com violência
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Há duas diferenças essenciais entre as revoltas na Tunísia/Egito e na Líbia/Bahrein: a revolução chegou aos países mais ricos do mundo muçulmano e, ao menos na Líbia, está sendo marcada pela violência também de parte dos rebelados, não apenas das forças pró-regime.
O Bahrein tem uma renda per capita de quase US$ 20 mil, similar à da França, oito vezes a do Egito. Já a Líbia, com seus US$ 12 mil de renda por pessoa, bate o Brasil e a Turquia, dois dos grandes emergentes.
É claro que esse indicador pode ser enganoso, devido à pequena população dos dois novos focos de revolta, contraposta a uma imensa riqueza petrolífera. O Bahrein tem 700 mil habitantes e, a Líbia, 6,4 milhões, contra os 80 milhões de egípcios.
Mas a riqueza, quanto maior, mais goteja para os mais pobres, o que reforça a impressão cada vez mais consolidada de que a rebelião é por liberdade muito mais do que por pão.
Escreve, por exemplo, Jean-Yves Moisseron, economista do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, no "Monde" desta segunda-feira: "Muito pobre nos anos 50, a Líbia é o país mais rico da África. O petróleo permitiu desenvolver a educação, a habitação e a saúde quase gratuita para todos. A população líbia é educada. O status das mulheres é invejável [claro que em relação ao mundo muçulmano], com uma igualdade de direito e de fato e com a interdição da poligamia".
Tudo somado, Moisseron explica a rebelião pelo "crescente descasamento, tornado insuportável, entre o desenvolvimento econômico que conduz por toda a parte a um modo de vida inscrito na modernidade, e a manutenção de regimes políticos ultrapassados, frequentemente encarnados por chefes de Estado envelhecidos e caracterizados por incrível imobilismo".
É, na essência, a mesma constatação que a Folha já reproduzira no sábado, vinda do filósofo argelino radicado na França Sami Naïr, para quem a cultura política dos jovens árabes em rebelião provem da "insuportável contradição entre a liberdade negada na vida cotidiana e a liberdade extrema de que os jovens desfrutam na internet, no Facebook, no Twitter, nos SMSs etc".
Nicholas Kristof, colunista do "New York Times" que está percorrendo os países rebelados, escreveu hoje que, para ele, o que está acontecendo lhe parece "a versão árabe de 1776", o ano da guerra da independência norte-americana, embebida precisamente pelo ideal da liberdade.
Se é de fato assim, está ocorrendo uma revolução de tremendas consequências para o mundo todo, não apenas para o Oriente Médio, a Pérsia, o golfo Pérsico.
Quanto à violência na Líbia, na forma de queima de edifícios governamentais, fica difícil de explicar porque a mídia estrangeira, ao contrário do Egito e da Tunísia e mesmo do Bahrein, é mantida à distância, inclusive a rede Al Jazeera.
Pode ser resposta à insuportável violência do próprio governo ou pode ser reflexo de disputas tribais, já que o regime se apoia em acordo com diferentes tribos, que estão igualmente representadas nas Forças Armadas.
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".
Nenhum comentário:
Postar um comentário