Prefácio de minha obra que será lançada - se tudo der certo em abril -
Prefácio
–Tese
de Doutorado – José Renato Ferraz da Silveira – PUC/SP
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William
Shakespeare e a teoria dos dois corpos do rei: a tragédia de Ricardo II
Entre os séculos XIV e XVII
a Inglaterra imaginou e/ou experimentou instituições sociopolíticas que seriam
decisivas em diversos quadrantes geográficos em períodos ulteriores, inclusive
o contemporâneo. Os tempos ali
sentidos, tanto no que concerne à Idade Média quanto à Moderna, nas suas
conexões histórico-simbólicas, auxiliaram na definição – talvez como em nenhum
outro lugar – dos traços predominantes do Ocidente liberal, e que viria também
a se tornar democrático posteriormente. Nunca é demais, portanto, quando para
lá retornamos e buscamos conhecer mais e melhor o seu caráter.
O professor José Renato
Ferraz da Silveira, do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM), dando sequência a uma pesquisa que já rendeu bons frutos
quando da publicação de sua dissertação de mestrado na forma de livro[1],
dá a conhecer, agora, a sua tese doutoral, defendida junto à PUC/SP, também na
forma de livro: William Shakespeare e a teoria dos dois
corpos do rei: a
tragédia de Ricardo II. Sim, os termos sugerem proximidade temática, mas a
complexidade que cada empreendimento oferece é ímpar. Veja-se a passagem a
seguir, na qual o prefaciador daquele livro e orientador acadêmico de Silveira,
professor Miguel Chaia (p. 13), discorre sobre o autor e sua obra:
Este livro [A Tragédia da Política em Ricardo III ]
é uma ousadia intelectual e um instigante produto acadêmico. José Renato faz
parte de um grupo de intelectuais que percebeu na contemporaneidade a complexa
relação entre as áreas de saber e busca borrar as fronteiras que compartimentam
a inteligibilidade do mundo. Nesse sentido, o autor supõe que também a arte –
como a filosofia e a ciência – é um exercício de pensamento e criação capaz de
gerar diferentes formas de conhecimento. Especialmente, no caso deste livro, o
autor seleciona peças de William Shakespeare para realizar uma investigação das
relações de poder, problematizando questões clássicas que envolvem a
sociabilidade humana.
Exatamente o mesmo pode ser consignado
em relação ao documento que ora vem a público. No entanto as diferenças (entre
as obras) não se limitam ao rei estudado: em Ricardo
II (1367-1400), cujo reinado compreende o intervalo
temporal de 1377 a
1400, explora-se a teoria dos dois corpos do rei (The King’s Two Bodies), formulada pelo historiador medieval alemão Ernst
Hartwig Kantorowicz[2]
(1895-1963). Uma abreviadíssima síntese de sua erudita pesquisa: postula este
autor que, entre as teorias que conferiam sustentação legal e divina aos
poderes reais no medievo, aquela que identificava uma dupla dimensão no corpo
real merece ser sobrelevada. Em específico: o rei não teria apenas “um corpo”,
mas sim dois; um natural, à semelhança de qualquer ser humano; e outro místico,
dotado, por conseguinte, de características especiais. O primeiro estaria
sujeito à morte; o segundo jamais morreria. Neste caso, a majestade da excelsa
posição seria transferida para outro corpo, remanescendo a simbologia.
Observe-se, ademais, que essa teoria conhecerá especial aceitação na Inglaterra
absolutista do século XVI, a do chamado “período elisabetano”.
Não parece ser sem sentido a
opção de Silveira em inaugurar o seu trabalho com um capítulo esclarecedor
sobre o reinado de Elisabeth (1558-1603). Veja-se que é no final do governo da
“rainha virgem” que Shakespeare produzirá o seu Ricardo II (1595-1596). O tempo, aqui, demonstra-se elástico: ao
narrar (e criticar) a conduta de um rei apeado do poder, o bardo parece
manifestar preocupações políticas contemporâneas a si. A propósito, no segundo
capítulo Silveira volta a examinar o contexto histórico em que Shakespeare produz.
O longuíssimo período de poder daquela que foi considerada a fundadora do
moderno império inglês foi prenhe de tensões (e de conspirações). Ao auscultar
historicamente um período anterior, Shakespeare ilumina o seu – sem prejuízo às
luzes lançadas sobre os tempos vindouros.
A Inglaterra – ou melhor, o
que viria a ser a Inglaterra – no último quartel do século XIV denotava
salientes evidências medievais. Dois grupos sociais eram francamente
majoritários em uma formação societária marcadamente rural: proprietários de
terras e camponeses. A Casa Real, desfrutante de todo o arcabouço simbólico
creditado às elites nobiliárquicas, já respondia a pressões advindas de um
Parlamento iniciado nas reivindicações por poder – lembrem-se as diferenças
entre o rei João Sem-Terra, os barões e o Papa, em 1215, quando da escritura da
Magna Charta Libertatum. Este é o
ponto: Ricardo II torna-se rei legitimamente (era herdeiro do trono), mas, no
decorrer de sua governança, em face de erros políticos continuados, é subtraído
de sua condição real. A deposição de Ricardo II, bem como todo o quadro de
crises que caracterizaram o seu reinado, constituem o mote para que Shakespeare
reflita sobre a política, a condição humana do político e o poder – em uma
perspectiva trágica, bem compreendido – de modo potencialmente universal.
Shakespeare prescreve a
ordem porque diagnostica a desordem. Uma
vez mais, Silveira desfila acuro analítico ao posicionar o artista britânico em
um espaço de confluências entre
“clássicos”, como Platão e Aristóteles, e “modernos”, tais como, Maquiavel,
Hobbes, Locke e Weber. Todos eles, cada um a seu modo – e sem o descuro da
inflexão teórica promovida pelo “gênio florentino”, cujo edifício erigido com O Príncipe permitiu a autonomia da
política –, ao homenagearem o realismo (em seus diversos matizes), contribuíram
à compreensão da política e da miséria humana que lhe é ínsita. Desdobramento
lógico: a ordem social traveste-se em uma quimera – e o exercício da política
um exasperante movimento que ousa conciliar arte e técnica. O poder não somente
se alimenta da alma dos que o controlam; ele requer habilidades humanas que
são, certamente, encontráveis em poucos – e que estão dispostos a fazer o que é preciso fazer.
Com o subsídio teórico de
Max Weber, Silveira mobiliza uma díade conceitual estruturante na política: o
princípio da legalidade e a lógica da legitimidade. O primeiro é condição
necessária (e adequada), mas não suficiente à unção no (e mantença do) poder; a
severa atenção à segunda mitiga o dilema da instabilidade da anuência,
caracterizadora de qualquer relação entre governante e governados. Ricardo II,
com a sua contumaz inabilidade na condução dos negócios do Estado, maculou a
aura circundante aos reis. E, com isso, o último dos Plantagenetas, antes de
ser destituído do trono por seu primo, Henrique Bolingbroke, bem como pela
parte da nobreza que a este apoiava, deslegitimou-se à condição real. Assiste-se,
dessa forma, não somente à deposição de um rei, mas desconstituem-se os
fundamentos de uma das teorias que suportaram a institucionalidade europeia no
medievo: a teoria dos dois corpos do rei começava a ruir; os valores modernos
iniciavam a corroer os seus equivalentes medievais.
Vislumbram-se, assim, os planos que interagem na obra de
Silveira: um autor contemporâneo (século XXI) se debruça sobre uma peça
shakespeariana (final do século XVI), que, de sua parte, com o possível intento
de metaforizar o reinado de Elisabeth, retrata um drama histórico-político da segunda
metade do século XIV. Não é necessário recorrermos às exigências vergastadas
por Quentin Skinner[3]
a uma boa recuperação de um tempo pretérito – a saber, erudição à farta na
apreensão dos significados dos termos dos debatedores daquele contexto – para
reconhecermos a coragem incomum do professor José Renato no tratamento dado aos
seus temas estudados. O que se depreende de sua obra (em tempo: de
agradabilíssima leitura) – e que certamente o aproxima de perspectivas shakespearianas
– é uma possibilidade que a todos fascina: os indivíduos teimam em não ser
escravos de seu contexto de formação, ceteris
paribus, parece ser necessário reconhecermos componentes constantes nas
nossas condutas. O exame da política – assim como o de seu sujeito, o político
–, em sua dimensão agônica e universal, apresenta-se como um bom caminho.
Reginaldo Teixeira Perez
Santa
Maria/RS, outubro de 2013.
[1] SILVEIRA, José Renato Ferraz da. A Tragédia da Política em Ricardo III. Rio de
Janeiro: Beco do Azougue, 2012.
[2] KANTOROWICZ, Ernest H. Os Dois Corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieval.
São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
[3]
SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. In: James
Tully (Ed.). Meaning and Context:
Quentin Skinner and his Critics. Cambridge: Polity Press, 1988. p. 29-67.
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