ATO III
Cena II
Londres. Um quarto no palácio.
Entram o Rei Eduardo, Gloster, Clarence e Lady Grey.
REI EDUARDO
Mano de Gloster, o marido desta senhora, Sir John Grey, em Santo Albano veio a perder a vida. Suas terras, o vencedor as teve. Ela deseja ser reintegrada, agora, nessas posses. Penso que fora injusto lhe negarmos o que nos pede, em vista de ter sido morto esse gentil homem tão conspícuo quando em defesa dos direitos de York.
GLOSTER
Vossa Alteza faz bem em conceder-lhas; fôra desonra agir de outra maneira.
REI EDUARDO
É o que eu penso, também, mas esperemos.
GLOSTER (à parte, para Clarence)
Como! É assim? Pelo que vejo, a dama deverá conceder algo, primeiro, para que o rei lhe satisfaça a súplica.
CLARENCE (à parte, a Gloster)
Ele conhece o jogo; vede como sabe sondar o vento.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
Ficai quieto!
REI EDUARDO
Viúva, estudaremos com o devido cuidado vossa súplica. Voltai depois para saberdes a resposta.
LADY GREY
Gracioso soberano, é-me impossível suportar a dilação. Seja do agrado de Vossa Alteza responder-me logo. Vosso prazer me deixará contente.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
Assim, viúva! Eu vos prometo todas as terras, se o prazer dele realmente, vos deixar satisfeita. Sede firme; do contrário, apanhais um golpe certo.
CLARENCE (à parte, a Gloster)
Não receio isso, a menos que ela caia.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
Deus nos livre! Então o rei se aproveitara.
REI EDUARDO
Dizei-me viúva: quantos filhos tendes?
CLARENCE (à parte, a Gloster)
Creio que ele deseja um filho dela.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
Deixar-me-ei chibatear, se for só isso; ele preferiria obter dois filhos.
LADY GREY
Três, ao todo, gracioso soberano.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
Ficareis com mais um, se a ele cederdes.
REI EDUARDO
De lastimar seria, se eles viessem a perder o que o pai possuiu em terras.
LADY GREY
Sede, pois, generoso, mui temível monarca, e concedei o que vos peço.
REI EDUARDO
Senhores, um momento: é meu desejo sondar a inteligência desta viúva.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
Um momento vos damos; ora tendes momentos à vontade; até que os anos num momento vos deixem de muletas.
(AFASTA-SE COM CLARENCE)
REI EDUARDO
Senhora, amais, realmente vossos filhos?
LADY GREY
Tanto quanto a mim mesma.
REI EDUARDO
E que faríeis para que eles pudessem ser felizes?
LADY GREY
Suportaria toda adversidade.
REI EDUARDO
Readquiri, pois, a bem de vossos filhos, as terras que já foram do pai deles.
LADY GREY
É com esse fim que venho a Vossa Alteza.
REI EDUARDO
Vou dizer-vos o modo de as obter.
LADY GREY
Isso me obrigará ao serviço vosso.
REI EDUARDO
E que serviço me fareis em paga?
LADY GREY
O que mandardes, se me for possível.
REI EDUARDO
Decerto direis “não” ao meu pedido.
LADY GREY
Salvo se eu não puder satisfazer-vo-lo.
REI EDUARDO
Ser-te-á fácil fazer o que eu pretendo.
LADY GREY
Nesse caso farei quanto ordenardes.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
Ele insiste. Água mole em pedra dura...
CLARENCE (à parte, a Gloster)
Vermelho que nem fogo! A cera é mole.
LADY GREY
Porque parais, milorde? Que serviço me compete fazer?
REI EDUARDO
É muito fácil: amar a um rei.
LADY GREY
É fácil e está feito, porque eu sou vossa súdita.
REI EDUARDO
Devolvo-te, então, os bens que foram do finado.
LADY GREY
Contente, e com mil graças, me despeço.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
Contrato pronto; a dama faz mesuras.
REI EDUARDO
São os frutos do amor que eu tenho em mente.
LADY GREY
Sim, os frutos do amor, meu soberano.
REI EDUARDO
Sim, mas noutro sentido, é o que eu receio.
Que amor calculas que eu estou a pedir-te?
LADY GREY
Meu amor até à morte, minhas preces, meus agradecimentos irrestritos; o amor que puder ser pela virtude ao mesmo tempo dado e recebido.
REI EDUARDO
DIFERENTE ERA O AMOR EM QUE EU PENSAVA.
LADY GREY
Então não compreendi vossas palavras.
REI EDUARDO
Creio que as entendeis, agora, em parte.
LADY GREY
Jamais consentirá meu sentimento no que Vossa Grandeza me sugere, se é certo o que imagino.
REI EDUARDO
Sem rebuços direi que almejo me deitar contigo.
LADY GREY
Sem rebuços direi que é preferível viver numa prisão.
REI EDUARDO
Pois, nesse caso, não reaverás os bens do teu marido.
LADY GREY
Pois, nesse caso, todos os meus bens consistirão na minha honestidade, com cuja perda eu nada possuiria.
REI EDUARDO
Assim, teus filhos ficaram lesados.
LADY GREY
Assim, por Vossa Alteza ficaremos lesados eles e eu. Mas, poderoso senhor, esses alegres devaneios não vão bem com a tristeza do pedido que vos apresentei. Mandai-me logo despachada, dizendo “sim” ou “não”.
REI EDUARDO
Sim, se disseres “sim” ao meu pedido; não, se disseres “não” à minha súplica.
LADY GREY
Então não, meu senhor; já me retiro.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
A viúva está zangada; franze o cenho.
CLARENCE (à parte, a Gloster)
O mais desajeitado namorado de toda a cristandade.
REI EDUARDO (à parte)
Na maneira de olhar, lê-se modéstia; no discurso revela inteligência incomparável. Todas as suas perfeições exigem soberania. De qualquer maneira, foi feita para um rei. Será, portanto, minha amante, ou será minha rainha. Digamos que Eduardo te esposasse?
LADY GREY
Meu senhor, isso é fácil de ser dito, mas não fácil de ser posto em prática. Como súdita, eu sirvo para objeto de galhofa, mas me acho muito longe de servir para o posto de rainha.
REI EDUARDO
Meiga viúva, juro por meu trono que eu falei quanto almejo no mais íntimo da alma: possuir-te como o meu amor.
LADY GREY
É mais do que pudera prometer-vos. Sei que sou muito humilde para esposa de Vossa Alteza, mas bastante boa para tornar-me vossa concubina.
REI EDUARDO
Viúva, estais usando de malícia; o que eu pretendo é vos fazer rainha.
LADY GREY
Ofenderia Vossa Graça, acaso, ser chamado de pai pelos meus filhos.
REI EDUARDO
Não mais do que se minhas filhas viessem a te chamar de mãe. Tens alguns filhos, e – pela mãe de Deus – embora eu seja celibatário, alguns, também, possuo. Como é belo ser pai de muitos filhos! Não me retruques; vais ser minha esposa.
GLOSTER (à parte, a Clarence)
O padre já acabou a confissão.
CLARENCE (à parte, a Gloster)
Fez-se padre por pura malandragem.
REI EDUARDO
Mano, adivinhais o que falamos?
GLOSTER
A viúva não gostou; tem o ar tristonho.
REI EDUARDO
Julgaríeis estranho desposá-la?
CLARENCE
Com quem, senhor?
REI EDUARDO
Comigo mesmo, ora essa!
GLOSTER
Provocaria espanto de dez dias.
CLARENCE
Um dia mais do que perdura o espanto.
GLOSTER
Fôra infinito espanto assim tão grande.
REI EDUARDO
Podeis brincar, irmãos, quanto quiserdes; digo-vos que ela obteve bom despacho no que respeita às terras do marido.
(ENTRA UM NOBRE)
NOBRE
Vosso inimigo Henrique, meu gracioso soberano, foi feito prisioneiro e conduzido às portas do palácio.
REI EDUARDO
Levai-o para a Torre. Vamos, manos, saber quem o prendeu, a fim de obtermos informações seguras sobre o modo por que foi preso. Podeis ir, viúva. Meus senhores, tratai-a honrosamente.
(SAEM TODOS, MENOS GLOSTER).
GLOSTER
Eduardo trata honrosamente todas as mulheres.
Pudesse ele esgotado vir a ficar, medula, ossos e tudo, para que de seus rins ramo auspicioso não nascesse, capaz de separar-me da idade de ouro com que eu sempre sonho!
Mas, entre mim e o anseio de minha alma – enterrado que seja, finalmente, o direito do lúbrico Eduardo – está Clarence, Henrique, o moço Eduardo seu filho e todos quantos ainda se acham por nascer deles e que certamente se sentarão no trono antes que chegue minha esperada vez. Considerandos bem frios, estes, para os meus projetos!
Mas, afinal, tudo isto é simples sonho.
Assemelho-me a alguém que, divisando de um promontório a praia ambicionada, pretendesse igualar os pés aos olhos e amaldiçoasse o mar que o separasse da meta cobiçada, prometendo deixá-lo seco e, assim, abrir caminho.
Assim desejo o trono tão distante, e assim maldigo os meios que me impedem de chegar até ele, prometendo destruí-los, mas, com isso, mais não faço que me encantar com coisas impossíveis. Aguda tenho a vista, ambicioso demais o coração, para que possam igualá-los os braços e os recursos.
Bem; concordemos que não há coroa para Ricardo. Então, que outra ventura poderá conceder-lhe o mundo todo?
Transformarei em céu o belo colo de uma mulher, com ricos ornamentos o corpo cobrirei, e com palavras e olhares renderei damas galantes. Oh pensamentos miseráveis! Fora mais fácil conquistar vinte coroas.
O amor me repudiou ainda no ventre de minha mãe. De medo que eu ficasse sob o seu regimento delicado, peitou a natureza criminosa para que me deixasse o braço seco com galho sem seiva, e uma montanha invejosa no dorso me pusesse, de onde a deformidade zomba à grande do meu corpo, estas pernas me deixasse desiguais, afastando-me toda proporção, como ainda informe filho de urso, que à mão em nada se parece.
Sou tipo, acaso, para ser amado? Oh monstruosa ilusão, pensar desta arte!
Ora, se a terra só me proporciona a alegria do mando, do domínio, de subjugar pessoas bem formadas, seja o meu céu sonhar com a coroa.
Enquanto eu tiver vida, puro inferno vai ser o mundo, a menos que a cabeça firmada, assim, neste disforme corpo, me circunde coroa gloriosa.
Contudo, ainda não sei como alcançá-la, que muitas vidas entre mim e a pátria se interpõem, e eu me vejo qual pessoa que num bosque de espinhos se encontrasse, quebrando, a um tempo, espinhos, e por eles sendo quebrado, a procurar caminho, : mas dele cada vez mais se afastando, sem saber como possa obter ar puro, sempre enleado a lutar em desespero: desta arte eu me atormento, só com o fito de apanhar a coroa da Inglaterra.
Hei de livrar-me, ao fim, deste martírio, muito embora precise abrir caminho com um manchado sangrento. Sim, que eu posso vir a matar, matar, enquanto eu rio, gritar: Viva! Ao que o peito me compunge, banhar o rosto com fingidas lágrimas e adotar aparência condizente com qualquer situação. Mais marinheiros afogarei no mar do que a sereia; sem vida vou deixar muito mais gente que me olhar, do que o próprio basilisco; mostrarei a eloqüência de Nestor; como Ulisses, serei astuto e fino; qual Sinão, ganharei mais uma Tróia. Ao camaleão eu posso emprestar cores, muito mais que Proteu mudar de formas, ao próprio Maquiavel servir de mestre. Posso tudo isso e não consigo o trono? Ora, hão de ver que dele eu vou ser dono.
(SAI)
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