A POLÍTICA EXTERNA COMO ESFERA AUTÔNOMA DA MORAL
Com o desmoronamento da ordem mundial baseada na bipolaridade entre os EUA e a URSS e a intensificação da globalização em suas vertentes econômica, cultural e política, refletir sobre o complexo sistema das relações internacionais tem-se tornado frequente e necessário. Em um ano eleitoral como este, o interesse do eleitorado pela política externa bem como os intensos debates em torno desse mesmo eixo são salutares para nossa democracia, em intenso processo de consolidação. Analisando os debates entre os principais candidatos à presidência da República, nota-se que uma das mais eminentes divergências diz respeito à relação diplomática entre Brasil e Irã. Quanto a isso, a despeito da complexidade do assunto, algumas pequenas ponderações devem ser feitas a fim de que o tema seja amplamente compreendido. Longe de qualquer soberba pretensão, faço uso deste espaço com o intuito de problematizar aquilo que vem sendo alvo de acalorados debates técnicos e, principalmente, políticos.
Primeiramente, torna-se fundamental mencionar aqui a palavra moral. Não obstante a falta de consenso entre os filósofos em definirem a acepção desse termo, podemos entendê-la como, nas palavras de Frankena, um “sistema de normas sociais sob as quais os indivíduos se veem ao longo de toda a vida”. Sendo assim, a moral não é simplesmente imposta de maneira coercitiva aos indivíduos, já que eles aceitam a legitimação desses valores, ora utilizados para uma estável convivência em plena sociedade civil. No entanto, quando essa rede de normas sociais é infringida, surge o que Frankena chama de “pressão social”. Nesse caso, as sanções podem ser o vitupério, o asco e a fobia, mas não a força (o que distingue a moral do direito, por exemplo).
Indubitavelmente, a moral, como um sistema de regulamentação, faz-se necessária a nossa sociedade, estabelecendo, por conseguinte, padrões de convivência e restringindo possíveis excessos e sobreposições de interesses privados. No entanto, como a moral deve ser entendida no plano das relações internacionais e, mais do que isso, teria ela a capacidade de nortear as ações de um Estado soberano em suas relações com os demais pares estatais?
Certamente, muitos anuirão com minha proposta de socorrer-me com os escritos de Nicolau Maquiavel. Esse grande estudioso das relações políticas foi taxativo em afirmar que a política em nada se relaciona com a religião, com o direito, e tampouco com a moral. O príncipe, segundo esse florentino do século XVI, “não deve se importar com se expor à infâmia dos vícios sem os quais seria difícil salvar o poder. Porque, considerando-se bem tudo, há coisas que parecem virtude e acarretam a ruína, outras que parecem vício e, com elas, obtêm-se a segurança e o bem-estar”. Não faço aqui, caro leitor, uma justificativa para os lamentáveis atos escusos e corruptos em nossa tão difamada política tupiniquim. O que afirmo, pois, é que a política externa de qualquer país não depende de valores morais, por mais louváveis que possam ser. Ainda que seja praticamente consensual no mundo ocidental que a democracia deve ser a tônica de nossas instituições políticas e sociais - fato identificado pelo professor Ricardo Seitenfus como a “ditadura da democracia”-, os interesses de Estado não devem ser pautados por questões morais. Com um comércio bilateral passível de crescimento, Brasil e Irã devem manter relações amistosas, visto que nosso país pode auferir somas financeiras significativas aos seus cofres.
Importante frisar que o caso Brasil-Irã serve como um mero exemplo ilustrativo de minha opinião, visto que não possuo nenhuma simpatia ideológica pelo regime despótico e autoritário da teocracia iraniana. Entretanto, tais antipatias políticas não devem obliterar nossas capacidades de discernimento e de exame sobre os reais interesses de um Estado soberano. No “jogo politico das relações internacionais”, a história já nos mostrou incontáveis vezes que os preconceitos, a inflexibilidade e o apego a certos dogmas acabaram restringindo a capacidade de ação de muitos chefes de Estado.
Com a finalidade de melhor explicar esse ponto de vista, atenho-me ao exemplo de Otto Von Bismarck, o responsável pela unificação alemã em 1871. Mesmo sendo um “vigoroso adversário da revolução liberal de 1848”- conforme discorre Henry Kissinger sobre a personalidade do Chanceler de Ferro -, Bismarck não hesitou em flexibilizar seus valores conservadores, em favor da exploração das situações políticas existentes, visando sempre os interesses da Prússia. A despeito de sua ojeriza pessoal pelos valores liberais e democráticos, manteve uma política externa flexível, buscando sempre a unificação da Alemanha, sob a égide das instituições e da sociedade militaristas da Prússia. Distinguindo noções pessoais de noções políticas e “relativizando todas as crenças”, Bismarck alcançou um dos maiores objetivos dos alemães – a unificação do país. Mesmo que desde Richelieu, o objetivo central da política externa francesa tivesse sido evitar a unificação da Alemanha, o chanceler estabeleceu uma política amistosa com Napoleão III até o limite – quando na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), o último óbice à unificação alemã sucumbiu.
Como nos ensina Maquiavel, a história é a “mestra da vida”, “a verdade efetiva das coisas”. Não devemos, portanto, abrir mão de seus ensinamentos, de modo que os exemplos do passado sejam ignorados pelas ações do presente. Obviamente, o Estado brasileiro não deve ser condescendente com quaisquer práticas no âmbito externo, sob a justificativa baseada na independência da política frente a questões morais. O que mais importa, todavia, é entendermos que as relações diplomáticas e comerciais não devem ser estabelecidas por meio de inferências mal fundamentadas. Caso insistíssemos na falta de pragmatismo político em prol dos louváveis valores democráticos e liberais, nem mesmo os Estados Unidos mereceriam nossa confiança, haja vista os diversos acontecimentos de explícito desrespeito às liberdades individuais nesse país. O que fica claro para profissionais das Relações Internacionais e demais interessados é que o radicalismo – nem mesmo o radicalismo democrático – não é capaz de obter bons frutos na esfera política. Portanto, é um imperativo desse “jogo político” que a flexibilização, a prudência, o pragmatismo e o diálogo sejam estabelecidos como eixos fulcrais na busca pelos interesses do Estado brasileiro.
Guilherme Backes – acadêmico do curso de Relações Internacionais da UFSM
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