As evoluções da era moderna
Quais são, a nosso ver, os acontecimentos que vão modificar as mentalidades, em especial, a ideia do indivíduo e de seu papel na vida cotidiana da sociedade?
Três fatos externos, ligados à grande história político-cultural, são relevantes. O mais importante é, talvez, o novo papel do Estado, que a partir do século XV não parou de se impor sob modos e meios diferentes. O segundo fato é o desenvolvimento da alfabetização e a difusão da leitura sobretudo graças à imprensa. Por fim, terceiro fato, o mais bem conhecido e que não deixa de ter relação com os dois anteriores, as formas novas de religião que se estabelecem nos séculos XVI e XVII. Elas desenvolvem uma devoção interior – sem excluir, muito pelo contrário, outras formas coletivas da vida paroquial -, o exame de consciência, sob a forma católica da confissão ou a puritana do diário íntimo. Entre os laicos, a oração cada vez mais assume a forma da meditação solitária num oratório privado ou simplesmente num canto do quarto, num móvel adaptado para esse fim, o genuflexório.
Distinguirei seis categorias de dados importantes que agrupam em torno de elementos concretos as mudanças ocorridas e permitem apreendê-las sob uma forma elementar:
1) A literatura da civilidade é um dos bons indicadores de mudança, pois nela vemos os costumes dos cavaleiros medievais se transformar em regras de savoir-viver e código de polidez. Uma atitude nova em relação ao corpo, ao próprio corpo e ao de outro. Já não se trata de saber como um rapaz deve servir à mesa ou servir o patrão, e sim de estender ao redor do corpo um espaço preservado a fim de afastá-los de outros corpos, furtá-lo ao contato e ao olhar dos outros. Assim, as pessoas param de se abraçar, ou seja, de se jogar nos braços umas das outras, de beijar a mão, o pé, de se lançar “de barriga no chão” perante uma dama que querem homenagear. Essas demonstrações veementes e patéticas são substituídas por gestos discretos e furtivos; não se trata mais de parecer nem de se afirmar aos olhos dos outros, porém, ao contrário de lembrar aos outros apenas o necessário para não se fazer esquecer totalmente, sem se impor por um gesto excessivo. A literatura da civilidade, a maneira de tratar o próprio corpo e o dos outros explicam um pudor novo, uma preocupação nova em esconder determinadas partes do corpo, determinados atos, como a excreção. Foi-se o tempo em que os homens, no século XVI, cobriam o sexo com uma prótese que servia de bolso e mais ou menos simulava a ereção. Também repugnará deitar os recém-casados em público em seu leito na noite de núpcias e voltar a seu quarto na manhã seguinte. Esse novo pudor, acrescentado a proibições antigas, chega mesmo a dificultar o acesso do cirurgião ao leito da parturiente, local de reunião essencialmente feminino.
2) Outro indicio de uma vontade mais ou menos consciente, às vezes obstinada, de se isolar, de se conhecer melhor através da escrita, sem necessariamente comunicar esse conhecimento a outros, exceto aos próprios filhos para que o guardem na memória, e muitas vezes mantendo as confidências em segredo e exigindo que os herdeiros as destruam: são o diário íntimo, as cartas, as confissões de modo geral, a literatura autógrafa que atesta os progressos da alfabetização e uma relação estabelecida entre leitura, escrita e autoconhecimento.
3) O gosto da solidão. Durante muito tempo considerou-se que um homem de elevada posição nunca devia ficar sozinho – a não ser para rezar. Os mais humildes tinham tanta necessidade de companhia quanto os grandes: a pior pobreza era o isolamento, tanto que o eremita a procurava como privação e ascese. A solidão gera o tédio: é um estado contrário à condição humana. No final do século XVII as coisas já não são assim.
4) A amizade. Essa tendência à solidão convida a partilhá-la com um amigo querido, selecionado no círculo habitual, em geral mestre, patente, servidor ou vizinho, especialmente escolhido, apartado dos outros. Um outro eu. A amizade já não é apenas a fraternidade de armas dos cavaleiros da Idade Média; no entanto, há muitos vestígios dela na camaradagem militar dessas épocas em que as guerras ocupam a nobreza desde a mais tenra idade. É um sentimento mais polido, um relacionamento tranqüilo, uma prazerosa fidelidade, com toda uma gama de variedade e de intensidade.
5) Todas essas mudanças conjugadas e muitas outras contribuem para uma nova maneira de conceber e levar a vida cotidiana, não mais ao acaso das etapas, da utilidade mais banal, ou ainda como complemento da arquitetura e da arte, e sim como uma exteriorização de si mesmo e de valores íntimos que cada um cultiva em si. Isso levou a dar muita atenção e a dispensar muitos cuidados ao que acontecia na vida cotidiana, dentro de casa ou no próprio comportamento e a introduzir exigências de refinamento que demandam tempo e monopolizam o interesse – é o gosto, que se torna então um autêntico valor.
6) A História da casa resume, talvez, todo o movimento dessas constelações psicológicas que acabamos de mencionar, suas inovações e contradições. É uma história muito complexa, e só podemos assinalar sua importância. a) a dimensão dos cômodos; b) a criação de espaços de comunicação; c) a especialização dos aposentos; d) a distribuição do calor e da luz.
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