Lula, Soros, Ollanta Humala
No meio da campanha eleitoral de 2002 no Brasil, trombei com George Soros, o megainvestidor (ou especulador, ao gosto do freguês), em um jantar oferecido pelo Council on Foreign Relations para os participantes de um seminário em que ambos estávamos.
Soros, como é de seu hábito, foi cru na sua avaliação sobre o pleito brasileiro: "Ou é Serra ou o caos" (Serra, claro, era José Serra, o adversário principal de Luiz Inácio Lula da Silva).
De fato, os mercados, que abominavam Lula, líder nas pesquisas, apostavam contra o Brasil: o dólar subia, a Bolsa caía, o risco-país subia e por aí vai.
Tolo e ingênuo ainda me dei ao trabalho de perguntar a Soros se não era antidemocrático esse tipo de comportamento dos ditos mercados. Concordou que era mas filosofou: como na Roma antiga, votam os patrícios (que seriam, no caso, os agentes de mercado).
Como nas democracias modernas vota também o tal de povo, Lula acabou eleito. Mas a pressão dos mercados condicionou o novo governo: Lula se viu obrigado a nomear para o Banco Central um deputado eleito exatamente pelo partido de Serra (Henrique Meirelles), indicou para conduzir a economia um ex-trotskista convertido ferozmente ao livre-mercado (Antonio Palocci) e adotou uma política econômica conservadora para acalmar os mercados.
O encontro com Soros me vem à memória, nove anos depois, porque a história está se repetindo com o virtual presidente eleito do Peru, Ollanta Humala. Foi só a apuração apontar a sua vitória para que o dólar subisse, a Bolsa peruana tivesse que interromper o pregão quando a queda já era de obscenos 12,5% e até na Bolsa de Santiago do Chile, despencavam as ações de empresas chilenas que operam no Peru.
Simultaneamente, escancarava-se a pressão para que Ollanta indique seus Paloccis e Meirelles para a Economia e o Banco Central. Humberto Speziani, presidente da Confiep (a confederação das indústrias), não teve o menor pudor até em indicar o nome que prefere para o BC: Julio Velarde, que vem a ser o atual presidente do Banco Central, corresponsável, portanto, por uma política econômica pró-mercado.
É bom que se diga que essa política, do ponto de vista do crescimento, deu até mais certo do que a que Lula acabou adotando no Brasil: enquanto, nos oito anos do lulismo, o crescimento médio anual foi de 4%, nos cinco anos do atual presidente peruano, Alan García, o crescimento médio foi quase o dobro (7,1%).
Não obstante, prevalece o caráter antidemocrático do cerco dos mercados aos eleitos: por muito que o país tenha crescido, uma pesquisa feita no mês passado pela Universidade Católica mostrou que apenas 22% dos pesquisados achavam que a política econômica deveria ser mantida pelo governo que sairia das urnas de domingo, relatou o "New York Times". Acrescentou um comentário de Steven Levitsky, professor de governo da mitológica Harvard University que este ano está lecionando em Lima: "Dado o 'boom' econômico, o fato de que um de cada cinco peruanos não quer manter o status quo é extraordinário".
Nada impede que Humala repita Lula, guine para o conservadorismo e, ainda assim, se dê bem como se deu o brasileiro.
Mas também nada garante que conseguirá a estabilidade que Lula obteve, graças a seus méritos mas também à sua conversão.
Ao contrário, os indícios são incômodos, a saber:
1 - A diferença entre Humala e a perdedora, Keiko Fujimori, foi bem mais estreita do que no Brasil, inferior a três pontos percentuais.
2 - Humala não tem atrás de si um partido enraizado na sociedade e embricado com organizações sociais.
3 - O ataque ao real, no Brasil, deu-se durante a campanha eleitoral e não depois da votação, ao passo que, no Peru, está ocorrendo "uma derrota histérica" dos anti-Humala, como escreve Augusto Álvarez Rodrich, em "La República".
4 - Mesmo os que, no segundo turno, optaram por Humala como o peruano mais famoso, o escritor Mário Vargas Llosa, não lhe estão dando um cheque em branco. "Se esta candidatura não cumprir [o prometido], claro que intervirei com a mesma energia e convicção com que interferi na campanha em favor de Ollanta Humala", disparou esta segunda-feira.
Sendo o Nobel de Literatura um liberal da mais pura cepa, se Humala arranhar a economia de mercado, encontrará um adversário de verbo terrível.
Se eu fosse obrigado a apostar, diria que Humala será cauteloso até mais do que Lula. Afinal, Bill Richardson, ex-governador do Estado norte-americano do Novo México, prócer democrata, observador da Organização de Estados Americanos para a eleição peruana, é capaz de jurar, depois de encontros reservados com os dois candidatos finalistas, que "Humala é um nacionalista com pontos-de-vista em evolução e que corre numa faixa pragmática", como disse ao "New York Times".
Resta ver se pragmatismo basta.
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".
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