Acesso à Segurança. Proposta de observação das experiências comunitárias de policiamento e de segurança.
Luís Antônio Francisco de Souza
Universidade Estadual Paulista – Unesp. Campus de Marília.
Resumo
O presente artigo busca refletir sobre novas experiências de alternativas comunitárias de segurança para os moradores de áreas consideradas de risco. O pressuposto do artigo baseia-se na idéia de que um novo laço de confiança entre a comunidade e o poder público, que valorize a participação, a pluralidade e a transparência, é componente fundamental em qualquer política pública. O artigo afirma a importância da implantação e o acompanhamento de experiências alternativas de segurança, que valorizem a participação popular na definição de prioridades e de ações na área de segurança pública. A idéia, portanto, é dar consistência local às diferentes intervenções setoriais do poder público, que, tradicionalmente, foram desarticuladas da realidade social e das necessidades da população.
Palavras-chaves: segurança pública, contratos locais de segurança, segurança local, violência.
Introdução
Segurança pública é um fenômeno complexo, enraizado em processos culturais locais. Ela, portanto, deve decorrer de um conjunto de práticas comunitárias e de iniciativas que compreendem um sem-número de experiências bem-sucedidas, em diferentes áreas de atuação das entidades públicas e privadas. Essas iniciativas devem valorizar, sem dúvida, a melhora das condições de inserção social dos jovens e de grupos vulneráveis. Dentro do território comunitário, as entidades, sobretudo aquelas voltadas para a educação de crianças e jovens, devem ter preocupação essencial com a prevenção do uso de drogas e com a adequada orientação dada aos jovens. Trata-se de valorizar a produção coletiva de um ambiente social seguro.
Sabemos que a construção do espaço social envolve a ocupação dos espaços comunitários disponíveis. Sabemos que vários espaços, tais como escola, centro de saúde, entidades assistenciais, igreja etc, existem e podem ser potencializados. Ao mesmo tempo, os espaços disponíveis da própria administração municipal e os grupos já existentes e atuantes no bairro podem ser articulados de maneira a produzir uma corrente de iniciativas que possam não somente fortalecer os laços comunitários como também ampliar a visibilidade cultural e social de jovens atores sociais. Nesse sentido, é preciso envolver os diferentes níveis de intervenção sobre o espaço social da cidade, reconstruir os vínculos das pessoas com sua cidade, permitir a elas processos criativos de recuperação da auto-estima e de reinserção no conjunto da cidade. Na cidade de São Paulo, surgiu um projeto desse tipo intitulado Centro Integrado de Cidadania (CIC), cujo principal papel era integrar e aproximar os diferentes serviços públicos presentes na comunidade e facilitar o acesso popular aos mesmos. No Rio de Janeiro foi proposto algo similar na forma de Batalhões Comunitários de Serviços. A PM passaria a ser um outro espaço, mais democrático, no qual vários serviços estariam integrados, o que facilitaria o acesso popular e o distanciamento da comunidade do círculo vicioso do tráfico. No contexto nacional, o PRONASCI (Programa Nacional de Segurança com Cidadania) propõe a criação de territórios da paz em que iniciativas públicas e privadas sejam coordenadas de forma a garantir um ambiente social seguro para a população.
Para essas iniciativas terem algum impacto, é importante que a comunidade já desenvolva algum tipo de projeto, integrado e bem-sucedido. É preciso criar ações que permitam aos líderes comunitários a melhoria na sua capacidade comunicativa. Mudança de políticas públicas, mas também mudança simbólica, de valorização das conquistas populares e de maior presença da comunidade nos meios de comunicação e nas instituições. Projetos de segurança pública local deveriam ter ao menos os seguintes objetivos: a) identificar lideranças; b) levantar as demandas da população, através de grupos focais; c) compreender as atuais estratégias de integração entre o nível local, regional e estadual de intervenção sobre o bairro; d) envolver os conselhos comunitários, municipais e/ou estaduais; e) acompanhar o planejamento e implementação dos serviços públicos locais e monitorá-los; f) realizar avaliação, criando indicadores de medição do impacto do projeto.
Violência e políticas públicas de segurança
As agências de aplicação da lei têm sido, para dizer o mínimo, incapazes de assegurar a proteção dos cidadãos contra o crescimento dos crimes violentos. Em outros termos, os governos estaduais, em suas políticas de segurança pública, enfrentam sérias dificuldades em assegurar o monopólio estatal da violência e garantir o exercício pleno da legalidade democrática. Essa dificuldade é perceptível na resistência às mudanças encontradas dentro do poder judiciário, da administração da justiça e nas instituições da segurança pública. Esses setores oferecem considerável resistência às mudanças, em termos de uma baixa adesão aos valores democráticos, aos direitos fundamentais e ao controle externo. As violações sistemáticas de direitos, por criminosos ou por agentes do poder público , solapam a sociabilidade democrática e prejudicam a expansão das conquistas da sociedade civil. As soluções violentas de conflitos tornaram-se moeda corrente e houve considerável aumento das tensões nas relações interpessoais (Mesquita Neto, 2001 & Pinheiro et al, 1998).
Essa incapacidade pode ser compreendida por três motivos: 1) O poder público não atribui a devida importância aos conflitos, eles, no máximo merecem apenas a atenção esporádica, desproporcional, descontínua e ineficaz das agências policiais; 2) Ele entende os conflitos locais como pertencentes ao âmbito privado, relegando-os às iniciativas assistenciais ou aos poderes diferenciais existentes na comunidade; 3) Os conflitos existentes na comunidade não foram incorporados pelas políticas públicas voltadas para a educação, saúde, habitação e trabalho.
As agências de segurança, particularmente as polícias, têm primado pelo controle violento da criminalidade, pela discriminação de determinadas faixas da população e de determinados grupos sociais e pela virtual ineficácia em controlar os membros de seus próprios quadros. Ao mesmo tempo, essas agências têm-se mostrado indulgentes com os crimes e ilegalidades das elites (Soares, 2000 & Mesquita Neto, 1999). O resultado desse cenário encaminha-se na direção de uma distribuição profundamente desigual da segurança, as comunidades periféricas tornam-se reféns do medo, do controle territorial promovido pelas quadrilhas do tráfico de drogas, e as elites são beneficiadas por níveis intoleráveis de impunidade. O quadro, portanto, torna-se explosivo, pois alia a violência desnecessária com a impunidade, a pobreza com a disseminação das drogas, o desemprego estrutural dos jovens e a ostentação dos ricos e poderosos (Zaluar, 2004; Pinheiro, 2001).
Tudo isso proporciona o aumento da demanda por políticas penais de caráter punitivo, a aceitação da violência policial contra eventuais criminosos e a descrença da população na capacidade do poder público de garantir seus direitos mais básicos. A conseqüência mais perversa desse quadro inquietante é a virtual ruptura do sistema de proteções legais e a tolerância ou o silêncio em relação às violações das leis pelos agentes da lei (Shirley, 1997; Zaluar, 1999).
O crescimento das taxas de criminalidade cria ambiente favorável à proliferação de toda a sorte de crimes, desde as incivilidades e a depredações de patrimônio público até as ameaças e o homicídio. O problema se agrava na medida em que a comunidade, cativa desse processo, é dominada pelos traficantes e pelos policiais corruptos ou violentos. As frustrações decorrentes de um acesso precário aos direitos afetem a concepção popular de justiça. A comunidade, diante disso, define de maneira contraditória quem merece e quem não merece ser respeitado, o que interfere na sua percepção sobre o valor dos direitos humanos, da cidadania e da avaliação do que é justo e igualitário. As pesquisas antropológicas têm reconhecido a importância do ethos da honra masculina como componente da violência existente nos morros do Rio de Janeiro.
“A honra, portanto, não é igual para todos, depende da posição da pessoa na hierarquia local e da observância, por parte da mesma, de um comportamento condizente com a sua posição em termos de status, classe de idade ou gênero. (...) tudo de passa como se somente os homens pudessem conquistar a honra e como se as mulheres pudessem mais facilmente perde-la.” (Alvito, 1996: 149).
Nas comunidades, os valores sociais ganham um sentido específico, que deve ser compreendido e levando em consideração:
“O ato de matar uma pessoa não é julgado a priori como um crime, segundo uma concepção universal de justiça. A avaliação moral deste ato depende de quem foi morto e em que circunstâncias isso ocorreu. Um bandido que mata um trabalhador ou alguém que não esteja envolvido na ‘vida deles’ é considerado sanguinário ou perverso. Um bandido que responde ao desafio ou provocação de outro bandido, especialmente se este pertence a outra área, pode ser elogiado pela sua valentia” (Zaluar, 1985: 143).
A relação entre as comunidades e a cidade é extremamente complexa, sobretudo se pensarmos na emergência de um novo tipo de cidade, baseado nos chamados enclaves fortificados. A cidade cada vez mais se fragmenta em unidades que conclamam sua independência, autonomia, segregando e isolando as pessoas e os grupos. No caso dos bairros nobres das cidades, os enclaves são meios de discriminação positiva.
“Privatização, cercamentos, policiamento de fronteiras e técnicas de distanciamento criam um outro tipo de espaço público: fragmentado, articulado em termos de separações rígidas e segurança sofisticada, e no qual a desigualdade é um valor estruturante. No novo tipo de espaço público, as diferenças não devem também ser disfarçadas para sustentar ideologias de igualdade universal ou de pluralismo cultural. O novo meio urbano reforça e valoriza desigualdades e separações e é, portanto, um espaço público não-democrático e não-moderno” (Caldeira, 2000: 12).
No caso dos bairros populares, esse microcosmo é comumente caracterizado como um estado dentro de outro, cujas regras e os mecanismos de controle mútuo seriam ditados pelos criminosos. A comunidade não somente compartilharia dos mesmos valores daqueles como os protegeria contra as investidas do mundo da lei e da ordem. De qualquer forma, no discurso dos moradores, há uma forte oscilação das opiniões quando se trata de fazer distinções entre os membros da comunidade, os trabalhadores ou gente de bem, e os criminosos e entre aqueles criminosos que “protegem” a comunidade e aqueles que a prejudicam. Certamente, a penetração das drogas pesadas e das armas nas comunidades foi responsável por esse efeito.
“Nas favelas, na periferia dos grandes centros urbanos e nos conjuntos habitacionais multiplicaram-se quadrilhas, compostas predominantemente por jovens, que passaram a exercer, em muitos casos, um controle efetivo sobre essas áreas da cidade. Através do tráfico passaram a ter acesso a armas de todos os tipos, com as quais exercem seu poder e travam verdadeiras guerras com seus competidores. Dentro desse quadro os valores tradicionais em que, por exemplo, as gerações mais velhas ocupavam uma posição de prestígio vão por água abaixo. Diferentes tipos de vida associativa, previamente existentes, são colocados em cheque pela ascensão dos traficantes e seus séqüitos” (Velho, 1996: 18).
As quadrilhas do tráfico, a arma pesada, a maior presença das igrejas pentecostais e as melhorias urbanas conquistadas tiveram um efeito imobilizador sobre as associações de moradores. Todas as pesquisas recentes apontam a dificuldade que os líderes comunitários enfrentam para fazer com que a comunidade se reúna para discutir seus problemas.
“Não se trata de uma violência sem limites, sem peias, mas de uma complexa negociação que permite a presença do crime organizado dentro das comunidades. (...) Se, por um lado, as formas de organização da vida comunitária das classes populares alimentam a rede do tráfico, no entanto, são estes mesmos valores de reciprocidade e de solidariedade que permitem a emergência de organizações comunitárias hoje capazes não apenas de oferecer uma alternativa ao mundo do tráfico em termos de ascensão social, mas também uma alternativa de construção de políticas públicas...” (Montes, 1996: 230-231).
Vários estudos (Lima, 2008; Sapori, 2007) têm demonstrado as diferentes maneiras através das quais os moradores constroem suas identidades, por proximidade física, por comunidade de ideais, por associação diante de um luta por melhorias no local, por cidade ou estado de origem, pela antiguidade no local, pela adesão a uma religião, pela condição de espoliados, pela posição que assumem diante dos representantes da lei ou do tráfico, enfim, as identidades são construídas e, assim, são relativamente fluidas. A comunidade não pode jamais ser identificada pelo compartilhamento da pobreza, pois mesmo a pobreza tem múltiplos significados para os moradores. Portanto, é preciso ter em mente que a comunidade tem algo extremamente profundo e ao mesmo tempo instrumental que se relaciona com projetos coletivos, com experiência compartilhadas, com teias de compromissos, com valores de solidariedade, de cooperação, de compadrio e de respeito mútuo. Alba Zaluar reflete sobre o que ocorreu após a ocupação da Cidade de Deus:
“Não menos importante é o relativo fracasso dos planejadores que deixaram sua marca impressa na linguagem dos conjuntos: as ruas largas e retas, por onde passam com facilidade os veículos militares, as casas alinhadas e absolutamente iguais por várias ruas, a praça de esportes como o lugar certo do esporte adulto, os play-grounds com os imponentes brinquedos de cimento armado para o divertimento infantil. Uma mensagem da disciplina, feita para encontrar e cultivar, nos trabalhadores pobres, a alma de cordeiros domesticados e amantes da ordem. Hoje, reina a polifonia dos desejos e gostos populares. Raras são as casas que não foram modificadas nas cores e nas formas acrescidas em todas as direções. É difícil encontrar duas iguais, maneira de nos lembrar mais uma vez que as classes são compostas de indivíduos. Os ‘prei-graum’ não existem mais. Os balanços, escorregas e gangorras de cimento armado foram pacientemente destruídos a golpes de marretas e que mais instrumentos pudessem encontrar, sem que os planejadores fossem consultados. Em seu lugar, nas praças espalhadas pelos conjuntos, surgiram quadras de samba e campos de futebol de salão, sempre ocupados por dedicados jovens futebolistas, ou por crianças praticando suas brincadeiras prediletas: soltar pipa, jogar capoeira ou queimado e brincar de ‘bandido e bandido’ ou ‘bandido e polícia’ com revólver de pau. (Não tem mocinho nesta estória) As casas destinadas a atividades comerciais foram ocupadas por sedes dos blocos de carnaval e as ruas usadas para um comércio ilícito, mas muito próspero. Os postes de luz, como em toda a cidade, exibem os resultados do bicho, jogo feito à luz do dia em barraquinhas de madeira, com uma rapidez e eficiência de fazer inveja às modernas empresas do país, bem perto da praça principal do conjunto.” (Zaluar, 1985: 83).
Assim, o valor supremo parece ser a “união” e a desunião é considerada uma conseqüência do individualismo, do enriquecimento, do envolvimento com a política etc, daí a inveja. A rixa e a jura de morte são outros fatores perturbadores da moral comunitária, pois suprimem qualquer possibilidade de recomposição da reciprocidade. A presença dos jovens é significativa nas comunidades, mas não reflete na maior participação em assuntos locais. Para atrair jovens, algumas associações buscam incorporar novas linguagens e interesses as suas lutas. Por exemplo, os adolescentes são considerados ótimos educadores quando se trata de questão ambiental. Nota-se também uma tendência do aumento de grupos juvenis culturais (rap, pagode, dança, teatro) revitalizando o espaço das associações. (Ibase, 2000: 25). A hierarquia que está presente em todas as relações comunitárias é minimizada ou diluída quando os valores compartilhados ganham destaque. De qualquer forma, levando-se em consideração a persistência de espaços de incivilidade, dentro e fora das comunidades periféricas, caracteriza a sociedade brasileira como uma democracia sem cidadania, ou uma democracia disjuntiva.
Controle social da violência
O pressuposto de um controle social da violência pode ser encontrado na emergência mesma da democracia, já que esta é um regime político baseado igualmente nas mediações entre estado e sociedade e entre esta e o indivíduo. O objetivo da democracia é resolver problemas de governo, de cidadania e da regulação dos conflitos.
Em outros termos, todo o aparato estatal, bem como os agentes públicos, devem se submeter à regra da lei. Assim, o estado de direito deve ser concebido não somente como uma característica genérica do sistema legal e da performance das cortes, mas também como a regra legalmente baseada de um estado democrático. Isto é, deve existir um sistema legal democrático em si mesmo, primeiro, porque ele suporta as liberdades e as garantias políticas; segundo, porque suporta os direitos civis de toda a população; e terceiro, porque estabelece redes de responsabilização.
Há obstáculos cruciais à efetividade de uma democracia verdadeiramente participativa, por exemplo, nos interesses das elites políticas e econômicas, na baixa legitimação dos direitos e das garantias constitucionais e na persistência da incivilidade. Tanto no Brasil como na América Latina, a democracia não teria avançado suficientemente em razão dos fenômenos apontados acima, mas também porque ocorreu uma inversão do esquema tradicional dos direitos. Os direitos sociais, que emergiram no contexto de lutas operárias ao longo do século XIX, são mais legitimados em nossa região do que os direitos civis e mesmo os direitos políticos. Em outros termos, nesses países há evidente discriminação e opressão pela própria lei; impunidade dos ricos; burocratização excessiva do Estado; não acesso à justiça; não eqüidade; ilegalidade; informalidade e existência de sistemas de poder subnacionais (O’Donnell, 1999).
Nesse sentido, a prática democrática é antídoto contra a violência sobretudo quando a democracia política e formal dá lugar para a emergência de uma sociedade civil autônoma, capaz ao mesmo tempo de auxiliar na construção das regras do jogo e de realizar concretamente o controle político do Estado. O fundamento de uma sociedade civil autônoma está na educação mas também na possibilidade concreta de realização das necessidades econômicas mais básicas, premissas essas que podem ser garantidas com a legitimação dos direitos humanos, através da proteção integral dos direitos civis e políticos, econômicos e sociais, bem como no reconhecimento da indivisibilidade, universalidade e interdependência desses mesmos direitos.
Ou seja, é necessária a instauração de um espaço de participação verdadeiramente civil, que “se situa a meio caminho do domínio compreendido pela noção de cidadania no sentido estrito - a igualdade jurídica de cada indivíduo perante a lei na defesa de seus direitos e no cumprimento de suas obrigações - e a ação política propriamente dita” (Paoli, 1982: p.55). O poder do Estado decorre da sua capacidade de controlar as fontes de violência, os conflitos existentes na sociedade, bem como de minimizar os efeitos de suas próprias ações violentas. O poder não é ilimitado, ao contrário, ele demanda a existência de controles políticos, institucionais e coletivos. As propostas de controle social da violência devem levar em conta que não é o aumento do poder do Estado sobre a sociedade, nem a radicalização de políticas repressivas que farão com que os conflitos retornem a patamares razoáveis. É preciso repensar as políticas públicas para as áreas urbanas, ampliar e consolidar a participação popular e recuperar a qualidade de vida dos cidadãos. É preciso reconhecer que a solução não é meramente institucional ou jurídica, mas é fundamentalmente política. Como bem lembrou Antônio Luiz Paixão, a “consolidação da democracia implica na redução da criminalização da marginalidade” (1988: 174). O respeito aos princípios básicos dos direitos humanos deve ser a razão de ser das políticas públicas e, neste sentido, devemos ser intolerantes em relação às desigualdades sociais, ao desemprego, ao salário mínimo, às políticas de restrição de direitos adquiridos, à violência policial, à corrupção, ao uso privado dos recursos públicos e à despolitização dos espaços sociais. A questão atual, portanto, não é mais perguntar sobre o processo de legitimação do poder do Estado, mas sim sobre a constituição de uma cultura democrática, de uma cultura plural e cosmopolita, que nunca está dada de antemão, mas sempre requer amplos e meticulosos processos de construção.
Contratos Locais de Segurança
Vale nesse sentido, refletir sobre a experiência dos Contratos Locais de Segurança (CLS), a partir do modelo francês. Eles têm como objetivo principal a resolução concreta dos problemas de segurança na localidade. Para isso, os CLS devem emergir de uma ampla mobilização do conjunto dos atores locais ligados à prevenção, repressão e tratamento social (diretores de escolas, serviço de polícia, responsáveis pelos serviços sociais, pela administração penitenciária e pela administração da justiça, e os representantes comunitários, incluindo organizações não-governamentais), dentro de uma lógica de parceria entre estes diferentes atores.
A idéia é fazer com que as diferentes intervenções setoriais do poder público ganhem consistência e sejam articuladas a partir de uma perspectiva local e integradora. Ou seja, os CLS atuam na prevenção social e situacional do crime e das incivilidades e funcionam como instrumento de identificação de problemas no funcionamento das instituições voltadas para a segurança pública. Os CLS colocam as comunidades, mesmo sendo uma comunidade desprovida de recursos e dos serviços tradicionalmente oferecidos pelo poder público, em condições de definir o serviço a ser prestado e sua qualidade. Segundo os CLS, são componentes da polícia de controle local da insegurança: políticas locais de prevenção e de segurança; as demandas populares de segurança; estratégias de educação e cidadania; parcerias; polícia comunitária; acesso à justiça; política específica de emprego para jovens; política de minimização das inseguranças e das incivilidades. Os Contratos Locais de Segurança contemplam várias etapas facilmente acessíveis pelas comunidades:
1. Definição das áreas a serem abrangidas pelo projeto. De uma forma geral, a definição deve levar em conta os jovens enquanto grupo social mais vulnerável às drogas e à violência e aqueles bairros que carecem de políticas específicas para essa faixa da população. Identificação das atividades, projetos, iniciativas que já estão em curso nas comunidades e no país, de uma forma geral.
2. Revisão da bibliografia concernente às estratégias alternativas de segurança no Brasil e no exterior. Contato com as principais iniciativas no estado de São Paulo.
3. Definição do conjunto de intervenções que afetará a área. É preciso lembrar que a definição desses serviços não pode ser feita a priori, mas sim nas reuniões que antecedem à elaboração de um contrato.
4. Identificação dos parceiros do projeto. Os parceiros devem esclarecer seus papéis no Contrato e suas reais possibilidades, dificuldades e limitações para atender as demandas da população.
5. Survey sobre qualidade de vida e segurança no bairro: a) quais são os conflitos que prevalecem na área; b) o que provoca mais insegurança na área; c) quais melhorias devem ocorrer na justiça criminal; d) quais são as expectativas em relação à ação dos policiais; e) quais são as práticas locais, públicas ou privadas, de resolução de conflitos; f) g) quais atividades ou serviços são necessários na comunidade para minimizar os problemas; h) quais espaços são necessários dentro da comunidade.
6. Recenseamento das informações objetivas relativas à segurança (estatísticas da delinqüência e incivilidades, dados sócio-econômicos etc.) para que haja um conhecimento da realidade local.
7. Definição dos grupos focais. Os dados quantitativos devem ser complementados com informações qualitativas. Não há limite para o número de reuniões, o importante é garantir algum grau de representatividade. É extremamente importante identificar as lideranças da comunidade. É importante, também, realizar reuniões com o grupo de representantes locais para confirmar o diagnóstico e para estabelecer os termos da cooperação e das parcerias;
8. Definição das prioridades (temas e grupos prioritários) e dos serviços a serem instalados. Estabelecimento de prioridade e metas simples, objetivas e realistas; definição de prazos, das responsabilidades partilhadas e das fontes adicionais de financiamento.
9. Estabelecimento de um contrato. O contrato, evidentemente, não tem valor legal, mas garante a legitimidade do processo e define as atividades, as metas e responsabilidades, os ganhos, e a adesão de todos ao processo.
10. Definição de instrumentos de implantação, distribuição de tarefas e de acompanhamento da implantação. A equipe deve fazer acompanhamento local de todas as atividades e deve ser definido um local privilegiado para as reuniões e atividades vinculadas ao Contrato. Todas as atividades devem ser registradas, fotografadas, gravadas e/ou filmadas para aumentar a reciprocidade e o compartilhamento das responsabilidades, bem como para manter a transparência de todo o processo, inclusive em relação à mídia local.
11. Busca das condições para futura implantação da intervenção principal e dos serviços contratados. O Contrato deve estabelecer prazos para a implantação das intervenções e definir todos os canais necessários para fazer com que os serviços ocorram em sincronia com a ocupação das unidades pelos moradores. Os moradores devem estar engajados em todo o processo, não podem ficar apenas numa posição de receptores passivos dos benefícios.
12. Avaliação do processo e dos resultados. É preciso elaborar estratégias de avaliação do processo, bem como do sucesso das atividades de modo a ele servir como piloto para outras iniciativas. A periodicidade da avaliação deve ser definida também pelo Contrato, mas estima-se um acompanhamento local e uma avaliação, através de um survey na comunidade, no período mínimo de um ano após a implantação do Contrato. É necessária a elaboração de um relatório de todas as atividades.
Considerações finais
O tema da violência ganhou um considerável espaço nas ciências sociais brasileiras, nas duas últimas décadas. De problema marginal na abordagem teórica tradicional, a violência passou a ser referencial para a compreensão dos dilemas que atravessam a sociedade brasileira contemporânea. A violência era considerada na perspectiva de sociologia do direito ou no contexto das crises econômicas e sociais decorrentes do processo de redemocratização do Brasil. Muitos conflitos coletivos e sociais são pensados como violência e sofrem repressão; violência e repressão são estratégias sociais, institucionais e simbólicas que reconhecem os conflitos em sua forma política, no cenário do espaço civil. Na atualidade, a violência não somente chama a atenção dos pesquisadores, como está presente no discurso e nas práticas de diferentes atores sociais, perplexos com a persistência dos conflitos, da desigualdade e da violência do Estado. Na discussão, observamos que a abordagem do tema deve se deslocar da crítica para a proposição de novas abordagens e de novas formas de conceber a gestão social do espaço urbano. Nesse sentido, o artigo pretendeu apontar a importância da sociedade civil, como espaço privilegiado de enfrentamento coletivo da violência e das dificuldades do Estado em garantir a segurança para os grupos mais vulneráveis da sociedade.
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