A TRAGÉDIA DA POLÍTICA EM RICARDO II
José Renato Ferraz da Silveira
Tempos sombrios
Vivemos tempos sombrios, tempos difíceis, tempo de tragédia, tempo de
grandes mudanças, quando se entrelaçam destinos pessoais e históricos em
registro extremo. É o retrato de tempos assim que é a matéria deste
livro. Estão em jogo a tensão e a ruptura dramática entre orientações
políticas básicas na passagem da era
medieval para a moderna. E quando se fala aqui em dramático é também no
sentido literal que se pensa: a tragédia como composição literária
destinada à encenação. Isso, na sua expressão mais alta, a de
Shakespeare, e numa peça na qual todas as reconfigurações impostas pela
mudança de época se condensam, a tragédia de Ricardo II. Também não
casual que se fale no livro das “forças imponderáveis do acaso” quando a
referência é a uma época em que ruíam as defesas contra a dimensão da
contingência nos assuntos humanos. Desde Aristóteles esta era
reconhecida como intrínseca à política, mas, no momento da consolidação
do poder monárquico no mundo cristão a ela se opôs a concepção da unção
divina, imune às contingências terrenas, como fundamento do direito
monárquico. Unção que se exprimia na ideia de que ao corpo profano do
rei se junta seu corpo sagrado (a doutrina dos “dois corpos do rei”, à
qual o autor deste livro recorre nas suas análises). É o período no qual
vem a emergir aquilo que Maquiavel colocou no centro da concepção do
exercício do poder político que marcaria a modernidade: a ação do homem
de valor, de virtú, para dar conta da contingência e, no tempo devido,
dobrar a seu favor a inconstância do acaso, da fortuna. Como se vê neste
livro, ao tratar de Ricardo II Shakespeare mobiliza os grandes temas
que dão unidade à sua dramaturgia política, centrada na figura trágica
do homem que está no centro da ação e tem sua capacidade de fazer frente
aos entrechoques de ambições e paixões continuamente posta à prova.
Como sugere o autor, e busca demonstrar pela contextualização histórica
da figura de Shakespeare, a qualidade primeira que ele vê no monarca
consiste em ser capaz de manter sob controle as ambições e hostilidades
daqueles que o cercam. Ser capaz de centralizar e concentrar na sua
pessoa o poder, não mais por injunção divina e sim (e aqui cabe
Maquiavel) por virtú. Unificar o mando, consolidar a nação; realizar,
portanto, a grande tarefa histórica do momento, a da construção do
Estado nacional. É esse tema, nas suas diversas dimensões e na
transfiguração que lhe confere a grande obra de arte, que se encontrará
reconstruída neste livro.
A peça
Ricardo II faz
parte das chamadas peças históricas da Dramaturgia shakesperiana: a
segunda tetralogia sobre a História da Inglaterra, em torno da figura de
Henrique de Bolingbroke (Henrique IV, Partes 1 e 2), a qual também
inclui Henrique V.
Para muitos críticos, a peça Ricardo II é a mais
formal e cerimonial das peças shakesperianas, onde os conflitos de
natureza política e bélica que geram a ação permanecem sempre nos
bastidores das evocações, são cenas de violência, traição e vingança, de
profunda carga emotiva, como a da célebre deposição do rei. Para os
leitores e espectadores hoje em dia, a excentricidade em Ricardo II é a
formalidade que tem um efeito maravilhoso e que provoca certo
estranhamento.
Dotado de uma natureza lírica, esse drama histórico
forma uma tríade, ao lado de Romeu e Julieta, uma tragédia lírica, e
Sonho de uma Noite de Verão, a mais lírica das comédias shakesperianas.
Embora seja a menos famosa das três e contenha altos e baixos, Ricardo
II é uma peça esplêndida; trata-se do melhor drama histórico escrito por
Shakespeare, excetuando-se as peças de Falstaff, isto é, as duas partes
de Henrique IV (BLOOM, 1998, p. 317).
Ricardo II não é uma peça
caracterizada pelo relato e pela representação dos fatos em si, mas pelo
seu desdobramento em sequências de momentos, quase sempre de espera, em
que a situação sobranceira autoconfiante do rei e de todos os que o
acompanham, estejam do seu lado ou em oposição, se vai dissipando em
presságios funestos até alçar a mais profunda trágica desesperança. As
falas mais pungentes são proferidas pelo próprio protagonista Ricardo
II. É interessante observar que na opinião do crítico Harold Bloom,
Ricardo II não passa de um ensaio para a criação do personagem Hamlet.
Ricardo II não é uma das peças shakesperianas mais “conhecidas do
público”. Uma breve retrospectiva pela sua recepção na Inglaterra dá
conta de oscilações significativas na apreciação e avaliação que as
diferentes épocas lhe atribuem. Junte-se a isso a reação política que
despertou junto ao público elizabetano que lhe valera a reputação de
peça subversiva e revolucionária.. De certa forma, mesmo após algum
interesse crítico suscitado nos meios culturais augustanos,
particularmente em Dryden e Samuel Johnson, a peça é relegada comumente
para alguma penumbra da memória das plateias e dos críticos. Será no
século XIX romântico, pela voz crítica de Coleridge e, algumas décadas
mais tarde por Pater, Montague, Yeats e Swinburne, que a obra recupera
enquanto retrato do homem na sua dimensão de masculinidade e não mais na
simbologia política. O período entre as duas guerras mundiais fizeram
de Ricardo II ser mais vista pelo público teatral na Europa ao
apresentar a trágica condição humana do estadista.
A atualidade da peça
Vivemos uma crise generalizada que intima profundamente a dimensão
cultural, artística, política, ecológica, espiritual e filosófica de
nosso tempo, pois todas estão tocadas, no seu âmago, por um sentimento
de desorientação e incerteza A angustiante insatisfação das populações
com as democracias ocidentais tem sido parte da História. Elevam-se as
vozes que interrogam as escolhas e decisões que determinaram a economia
política das sociedades. Mas ao mesmo tempo, vemos sinais da criação de
novas formas de viver e de pensar, inspirados na memória das lutas
políticas e dos movimentos sociais.
A presente obra A tragédia da
política em Ricardo II demonstra essa singularidade histórica do
Ocidente (podemos pensar também em termos do Brasil do século XXI),
entrelaçando experiências trágicas e esperanças messiânicas.
O
último rei Plantageneta, Ricardo II, viveu entre uma fraca base de apoio
e uma forte oposição armada contra seu governo. Perdeu a vida. Perdeu o
poder. Eram outros tempos. Tempos do medievo. Na Inglaterra. O rei
Ricardo II tentou-se manter através de um princípio de legalidade que
estava cada vez mais sendo superado pela época da transição crítica. Ao
leitor curioso, “Ele” acreditava ser o representante de Deus na Terra e
governar sem oposição ou resistência. Ledo engano! A política é marcada
por sua face conflituosa e paradoxal.
O que observamos é que cada
vez mais as vivências políticas dos estadistas são teatralizadas, em que
as “sombrias forças” do poder impactam principalmente neles. Parece que
os deuses honram com sua vingança não aos homens comuns, mas aqueles
que se situam acima da sua existência. É a sina e o destino trágico dos
estadistas.