A
tragédia da política em Ricardo III
A peça
A
peça Ricardo III, escrita entre 1592 e 1593, faz parte dos Dramas Históricos -
ao todo são nove – constituí como a tetralogia da Guerra das Duas Rosas,
gozando de extraordinária popularidade pelo seu vigor e temática envolvente. A
frase “Meu reino por um cavalo” se popularizou ao redor do mundo. Esta é uma
das célebres frases das peças de Shakespeare. E foi proferida por Ricardo III,
personagem da peça que leva seu próprio nome.
A
tragédia do rei Ricardo III trata da permanente disputa do poder a qualquer
preço e a falta de escrúpulos para a conquista e manutenção dele. Nela, o
protagonista é um sujeito manco e corcunda, cuja aparência disforme, segundo o
próprio, o impede de usufruir dos prazeres da conquista amorosa, mas não alçar
vôos mais altos. No solilóquio inicial ele planeja como chegar ao poder mesmo
sendo o sétimo na linha sucessória. Para alcançar seu objetivo, se utiliza de
expedientes vis: conspira, manipula, explora, agrega apoios, promove alianças
por conveniências momentâneas, articula adesões e coalizões, persegue e condena
à morte os opositores.
Movido
pela sede de poder Ricardo III articula-se nas sombras, ao longo dos atos e
cenas, até alcançar o triunfo almejado: o trono inglês. Para se livrar de
quaisquer suspeitas de seu envolvimento nas tramas e urdiduras palacianas ele
faz uso de subterfúgios conhecidíssimos: esconde-se sob o manto da religiosidade,
sobriedade, humildade e outros artifícios de valores éticos e morais.
A atualidade da peça e o Brasil
Ricardo
III é uma peça carregada de elementos políticos fundamentais intrigas;
conspirações; comportamentos políticos; conflitos de poder; diálogos embebidos
de retórica, persuasão e convencimento político; discursos de guerra;
coalizões; violência; astúcia; dissimulação; incertezas; a inevitabilidade do
Acaso; as qualidades, virtudes (virtú) e os vícios do príncipe.
Tanto o teatro como a política são
espaços nos quais somos levados a participar. Ambos exigem engajamento,
envolvimento, unidade entre representantes e representados, cumplicidade entre
ator (político) e público (cidadãos). William Shakespeare nos revela, através da
presente obra, o diálogo entre a política e arte e, consegue manter,
evidentemente, a atualidade da peça para os nossos dias.
Vivemos
uma época em que as práticas e o discurso político são associados à mentira, a
farsa, ao engodo de maneira descarada. A ética do indivíduo concebida e
desenvolvida no Renascimento se hipertrofiou na contemporaneidade. Notam-se as
conseqüências desse ultra-individualismo nas inúmeras doenças culturais que se
manifestam na sociedade brasileira: cultura da esperteza, da transferência de
responsabilidade, do imediatismo e do superficialismo, do negativismo e da
baixa auto-estima, da vergonha da cidadania e patriotismo, do rir da própria
desgraça, do desperdício, do consumismo, do tecnicismo, do corporativismo, da politicagem,
do fisiologismo e do nepotismo e, por último, a cultura do conformismo. Tais
comportamentos viciosos proliferam-se na esfera dos três poderes do Estado -
Executivo, Legislativo e Judiciário – como se observa nos sucessivos escândalos
que marcam os noticiários políticos dos últimos anos.
Sabe-se
que o poder político permeia as relações humanas e sociais de forma intensa e,
por vezes, devastadora. Na visão de Jean-Marie Domenach, todos somos, ao mesmo
tempo, vítimas e culpados, ao estarmos imersos no mundo da política.
Inúmeros pensadores, tais como: Maquiavel,
Locke, Foucault, Bertrand Russel ocuparam-se em discutir as práticas coletivas
dos meandros do poder e das ações sociais. Shakespeare vai além. Em Ricardo III , o poder
político se apresenta sem disfarces. O bardo inglês realiza a teatralização da
política expressando as tensões e paradoxos que atravessam a esfera do poder: o
potencial com que a Política pode contribuir ou impedir a melhoria da condição
humana. Nesse sentido, a política para Shakespeare é uma atividade tipicamente
humana caracterizada pelo binômio: motivação pelo poder e a inevitabilidade do
conflito. Surge daí, uma das novidades da nova perspectiva de compreensão da
política, ou seja, o reconhecimento da permanência do conflito. Caracterizar,
portanto, a política moderna ou contemporânea é entendê-la como jogo de forças
opostas resultantes dos inconciliáveis desejos humanos. Tal "choque de
interesses" evidencia o caráter trágico do jogo político: conquista,
manutenção e perda do poder.
Assim o escritor inglês nos ensina,
entretém e diverte. Através da arte
teatral fornece elementos constitutivos do homem contemporâneo e suas relações.
Essas movidas, muitas vezes, por uma ética individual refletida no uso
indiscriminado de inúmeras máscaras como no jogo teatral; múltiplos disfarces
agindo conforme interesses ou determinadas circunstâncias. Temos, então, o
religioso, o ateu, o humilde, o simples, o culto, o ignorante, o moralista, o
liberal, o caipira, o urbano, o ético, o ideológico, o pragmático, o vilão, o
herói, o solidário, o benemérito, o sensível, o delicado, o “paz e amor”, etc.
Todos, devidamente, direcionados ao
público alvo a ser atingido.
Na tragédia política Ricardo III
captamos essa ética sendo forjada e desenvolvida. Shakespeare nos revela essa
“ética” como um instrumento de poder e nos proporciona ironicamente mergulhar
em nossas consciências individuais e notar em nosso interior a presença da sede
de poder: o complexo Ricardo III. O
teatro moderno representado nas peças de Shakespeare, bem como o exercício da
política na contemporaneidade concebe os homens como sujeitos da história
impulsionados à participação - uma das exigências da democracia - não se
admitindo o desinteresse, a passividade e fundamentalmente a despolitização.
José Renato
Ferraz da Silveira
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